sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

“Leituras de porta-em-porta” leva "O Tatuador de Auschwitz" à comunidade escolar


No âmbito do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto e da atividade “Leituras de porta-em-porta”, a Professora Bibliotecária selecionou o seguinte texto que foi distribuído a docentes, assistentes operacionais e administrativos. O livro está disponível na Biblioteca Escolar. 






No âmbito do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto e da atividade “Leituras de porta-em-porta”, a Professora Bibliotecária selecionou o seguinte texto que foi distribuído a docentes, assistentes operacionais e administrativos. O livro está disponível na Biblioteca Escolar. 


“No dia seguinte, Lale apresenta-se nos serviços administrativos e é-lhe dito que hoje está de folga. Não são esperados novos prisioneiros, seja em Auschwitz ou em Birkenau, e o herr doctor também não vai precisar dele. Passa a manhã com Leon. Subornou o seu antigo kapo no Bloco 7 para deixar Leon passar o dia ali com ele, explicando que Leon irá ajudá-lo depois que recuperar as forças. Dá-lhe a comida que planeava dar aos seus amigos ciganos e a Gita para eles distribuírem.
         Deixa Leon no quarto e sai do bloco e então ouve Baretski chamá-lo.
         - Tetovierer, onde te meteste? Andava à tua procura.
         - Disseram-me que hoje não trabalhava.
         - Mas afinal trabalhas. Anda, temos serviço.
         - Tenho de ir buscar a minha pasta.
         - Para este serviço não precisas das tuas coisas. Anda.
         Lale apressa-se a segui-lo. Encaminham-se para um dos crematórios.
         Lale aperta o passo até o alcançar.
         - Onde vamos?
         - Estás nervoso?! – Baretski ri-se.
         - No meu lugar, não estaria?
         - Não. – Lale sente um aperto no peito; está com dificuldade em respirar. Deverá fugir? Se fizer isso, de certeza que Baretski lhe dará um tiro. Mas e então? Que importância teria? Antes uma bala que a câmara de gás. Estão já muito próximos do Crematório Três quando Baretski resolve finalmente acabar-lhe com a angústia. Abranda. – Não te preocupes. Vá, vem daí; ainda nos metemos os dois em sarilhos e acabamos na câmara de gás.
         - Não se vão livrar de mim?
         - Por enquanto, não. Parece que há dois prisioneiros com o mesmo número. Temos de ir ver. Ou foste tu a tatuá-los ou então foi o eunuco. Tens de nos dizer qual é qual.
         - O edifício de tijolo ergue-se, ameaçador, diante deles; se as janelas grandes disfarçam a sua função, o tamanho das chaminés confirma a sua horripilante verdadeira natureza. À entrada, esperam-nos dois soldados, que trocam piadas com Baretski e ignoram Lale. Indicam-lhes umas portas fechadas mais adiante, para onde Baretski e Lale se encaminham. Lale vai olhando em volta; se Birkenau é a estrada para a morte, esta é a reta final. Vê por ali os sonderkommandos[1], homens vergados, prontos a fazerem um trabalho para o qual ninguém neste mundo se voluntariaria: tirarem os corpos das câmaras de gás e levarem-nos para os fornos. Tenta fazer contacto visual com eles, fazer-lhes saber que também ele trabalha para o inimigo. Também ele escolheu manter-se vivo enquanto conseguir e, para isso, profana o corpo dos que professam a mesma fé que ele. Nenhum o olha de volta. Já ouviu os outros prisioneiros falarem destes homens e da sua posição privilegiada – têm um dormitório só para eles, recebem rações extra e têm direito a roupa quente e a cobertores. Há semelhanças entre a situação dos sonderkommando e a sua e Lale fica de estômago apertado ao ocorrer-lhe que também ele poderá ser desprezado pela sua tarefa no campo de concentração. Sem poder expressar a sua solidariedade para com estes homens, segue o seu caminho.
         São conduzidos até uma grande porta de aço, diante da qual está um guarda.
         - Não se preocupem, já não há gás aqui dentro. Temos de os mandar para os fornos, mas só podemos fazer isso depois de corrigidos os números.
         - O guarda abre-lhes a porta. Endireitando as costas, Lale olha Baretski nos olhos e, com um gesto, convida-o a ir na frente.
         - Tenha a bondade.
         Baretski desata a rir à gargalhada e dá-lhe uma palmada nas costas.
         - Não, tu primeiro.
         - Não, tenha a bondade – repete Lale.
         - Eu insisto, tetovierer. - O guarda das SS abre as portas de par em par e entram os dois para um espaço cavernoso. Está cheio de corpos, corpos nus às centenas. Estão todos empilhados, os braços e as pernas contorcidos. Olhos inertes fitam o vazio. Homens, novos e velhos; debaixo deles, as crianças. Sangue, vomitado, urina e fezes. Paira o cheiro da morte. Lale está a tentar não respirar, mas já lhe ardem os pulmões. As suas pernas ameaçam ceder. (…)
         - Aqui – indica um soldado, e eles seguem-no até um dos lados do espaço, onde estão estendidos dois corpos masculinos. O soldado começa a falar com Baretski. Mas, por uma vez, o jovem oficial está incapaz de falar; com um gesto, indica que Lale sabe alemão. – Têm os dois o mesmo número. Como é possível? – pergunta o soldado. Lale apenas consegue abanar a cabeça e encolher os ombros. Como raio querem que eu saiba?! – Olha para eles. Qual dos dois tem o número certo?! – pergunta o soldado, agora irritado.
         - Lale baixa-se e agarra no braço de um deles, grato por ter um motivo para se ajoelhar; só espera que isso o ajude a controlar-se. Lê os dígitos tatuados.
         - O outro…? – pede. Com modos rudes, o braço do outro homem é-lhe estendido. Lale examina um número e outro. – Isto não é um três, é um oito, vê? Está um pouco apagado, mas é um oito.
         O guarda escrevinha os números corretos naqueles dois braços frios. Sem pedir autorização, Lale põe-se de pé e abandona o edifício. Baretski vem ter com ele cá fora, onde o encontra curvado e a fazer um esforço para respirar fundo.
         O jovem oficial aguarda um momento.
         - Estás bem?
         - Não, não estou bem. Malvados. Quantos mais de nós querem vocês matar?!
         - Estás enervado. Eu percebo. – Baretski não passa de um miúdo, um miúdo sem instrução. Ainda assim, Lale não pode deixar de se perguntar como é possível que ele não sinta nada por aquelas pessoas que acabam de ver, a agonia da morte gravada nos seus rostos e nos seus corpos contorcidos. – Anda, vamos embora – chama-o Baretski. Lale endireita-se e acompanha-o, mesmo se não consegue olhar para ele. – Sabes uma coisa, tetovierer? Aposto que és o único judeu que entrou num crematório e tornou a sair.
         Dá uma gargalhada sonora e uma palmada nas costas de Lale e adianta-se num passo vigoroso.”




Morris, Heather, in O Tatuador de Auschwitz. Trad. de Miguel Romeira. Lisboa: Editorial Presença, 2018.


[1] As equipas que trabalhavam nos crematórios levavam os prisioneiros para as câmaras de gás, depois retiravam os cadáveres e transportavam-nos para os crematórios; asseguravam o funcionamento destes e, no fim, limpavam as cinzas. Estas equipas eram maioritariamente constituídas por prisioneiros. (NT)