“Leituras de porta em porta” é
uma atividade que pretende proporcionar aos elementos da comunidade escolar um
momento de leitura. Gostaríamos que esta atividade promovesse o “ler por
prazer” e não fosse mais um momento de análise de texto, de preenchimento de
fichas de leitura...
Assim, periodicamente, será
afixado nas portas de algumas salas de aula o documento, em suporte de papel,
que identifica a atividade. Nesse documento, reproduz-se uma das portas da
cidade do Funchal criada no âmbito do “Projeto arte pORtas abErtas".
Ao entrar numa sala em cuja porta
esteja afixado este documento, o/a professor/a de Português “deverá” proceder à
leitura do pequeno texto que encontrará em cima da sua mesa e/ou em suporte
digital, no ambiente de trabalho do computador da sala, de modo a permitir diferentes
modalidades de leitura.
Este mês, e porque outubro é o
Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, o texto escolhido, da autoria de
Walter Hugo Mãe, intitula-se “Bibliotecas”.
Aqui fica o texto, em jeito de
desafio, para que ele entre pela porta de muitas famílias e para que, nessas
casas, no momento que considerarem mais adequado, se leia apenas pelo prazer de
ler…
Boa leitura.
“Bibliotecas”
“As bibliotecas deviam
ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de
chegar.
Os livros são parentes
diretos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família
das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se
entrassem dentro do próprio ar, a ver o que existe para depois do que não se
vê.
O leitor entra com o
livro para o depois do que não se vê. O leitor muda para o outro lado do mundo
ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de
tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se
sintam fora das bibliotecas.
Os livros são também
toupeiras ou minhocas, troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os
livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos,
desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam
furos na cabeça. Eles sabem chover e fazer escuro, casam filhos e coram,
choram, imaginam que mais tarde voltam ao início, a serem como crianças. Os
livros têm crianças ao dependuro e giram como carrosséis para as ouvir rir e
para as fazer brincar.
Os livros têm olhos
para todos os lados e bisbilhotam o cima e o baixo, a esquerda e a direita de
cada coisa ou coisa nenhuma. Nem pestanejam de tanta curiosidade. Podemos
pensar que abrir e fechar um livro é obriga-lo a pestanejar, mas dentro de um
livro nunca se faz escuro. Os livros querem sempre ver e estão sempre a contar.
As bibliotecas só
aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade
dos ignorantes e dos incautos. Porque elas são como festas ou batalhas
contínuas e soam canções e trombetas a cada instante. E há invariavelmente quem
discuta com fervor o futuro, quem exija o futuro e seja destemido, merecedor da
nossa confiança e da nossa fé.
Adianta pouco manter os
livros de capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que
alguém os abra. Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame o
direito de seguir maior viagem. E vão oferecer tudo, uma e outra vez, generosos
e abundantes. Os livros oferecem o que são, o que sabem, uma e outra vez, sem
se esgotarem, sem se aborrecerem de encontrar infinitamente pessoas novas. Os
livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para
elas e divertem-se com isso. Os livros divertem-se muito.
As pessoas que se
tornam leitoras ficam logo mais espertas, até andam três centímetros mais
altas, que é efeito de um orgulho saudável de estarem a fazer a coisa certa.
Ler livros é uma coisa muito certa. As pessoas percebem isso imediatamente. E
os livros não têm vertigens. Eles gostam de pessoas baixas e gostam de pessoas
que ficam mais altas.
Depois da leitura de
muitos livros pode ficar-se com uma inteligência admirável e a cabeça acende
como se tivesse uma lâmpada dentro. É muito engraçado. Às vezes, os leitores
são tão obstinados com a leitura que nem se lembram de usar candeeiros de
verdade. Tentam ler só com a luz própria dos olhos, colocam o livro perto do
nariz como se o estivessem a cheirar. Os leitores mesmo inteligentes aprendem a
ler tudo, até aquilo que não é um livro. Leem claramente o humor dos outros, a
ansiedade, conseguem ler as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um
silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia, podem aprender a escrever.
Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as
árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão palavras.
Já vi gente a sair de dentro
dos livros. Gente atarefada até com mudar o mundo. Saem das histórias e
vestem-se à pressa com roupas diversas e vão porta fora a explicar descobertas
importantes. Muita gente que vive dentro dos livros tem assuntos importantes
para tratar. Precisamos de estar sempre atentos. Às vezes, compete-nos dar
apoio. Alguns livros obrigam-nos a pôr mãos ao trabalho. Mas sem medo. O
trabalho que temos pela escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos
felizes.
Todos os livros são
infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os
textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para
calcular. Mesmo os contos, de pequenos não têm nada. Se os soubermos entender,
crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de
profundo esplendor.
Devemos sempre lembrar
que ler é esperar por melhor.”
Mãe, Valter Hugo
(2015) «Bibliotecas» in Contos de cães e
maus lobos. Porto: Porto Editora, 2015.
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