Aqui fica um excerto do texto "Os Meus Irmãos Refugiados" o texto que esteve em destaque neste Natal na Biblioteca Escolar da ES Gama Barros.
“Os meus irmãos refugiados”
A
Miriam ia muito contente, saltitando pela rua de mão dada com a mãe. Gostava de
ir assim, de manhãzinha, até à escola. A mãe levava o bebé ao colo; era tão
pequenino que mais parecia um boneco. “Tão querido!”, pensou ela. O avô, já
velhote, ficara em casa, e o pai, médico, saíra como sempre a correr, muito
cedo, para o trabalho no hospital. A Miriam sentia-se especialmente contente
porque o irmão mais velho, que estava na tropa, ia chegar para umas férias em
casa. Ela gostava de o ver, alto e bonito na sua farda. Apesar de já ser grande
ele era superdivertido, brincava com ela e tinha sempre imensas histórias para
contar.
Mas
naquele dia tudo foi diferente…
Quando
chegaram, a escola estava fechada. Havia pais e professores à porta. Os adultos
falavam baixo, mas via-se que estavam nervosos. Por todo o lado só se ouvia uma
palavra: “Guerra!”
A
Mãe voltou para casa muito depressa, e a Miriam corria ao seu lado perguntando:
-
O que foi? O que aconteceu?
Ela
sabia que havia uma guerra, mas era muito longe, não era?
Quando
chegaram, o avô, com a voz a tremer, anunciou:
-
O Youssef já não vem, há combates nas montanhas onde ele está. E também
explodiram bombas no outro lado da nossa cidade.
-
Oh meu Deus! – gemeu a mãe.
O
avô continuou, tentando manter a calma:
-
Os telefones não funcionam, não consigo falar para o hospital. A guerra está a
aproximar-se, temos de fugir!
A
Miriam desatou a chorar.
Por
vezes os pais falavam da guerra, e todos tinham uma mala pequenina debaixo da
cama, pronta “para uma emergência”, como eles diziam. Mas ela brincava, ia à
escola e não pensava em coisas tristes. A guerra era uma coisa má que acontecia
lá longe.
Ela
não queria sair da sua casa. Nem tinha dito adeus à Bibi, a sua melhor amiga.
E
o pai?! Oh, não, o pai! Não podiam ir sem ele!
A
mãe tinha lágrimas nos olhos, mas uma expressão corajosa, quando explicou:
-
Temos de ir. O pai sempre disse que não podia abandonar os seus doentes, e
agora, com a guerra, vai haver mais feridos, e um médico aqui ainda vai ser
mais necessário. O avô leva-nos para casa dos primos, no Norte. O pai sabe para
onde vamos e vai ter connosco logo que puder. A Miriam tentou ser corajosa como
a mãe, ajudando a buscar as malas e a empacotar o máximo de comida possível em
caixas de papelão.
O
avô saiu e voltou com más notícias:
-
Não podemos ir de carro. As estradas estão um caos e dizem que a gasolina está
a acabar em todo o lado.
Como
em resposta, ouviram um “hin-hon” no quintal das traseiras. O velho burrico!
Que grande ajuda.
A
Miriam ajudou o avô e a mãe a pôr tudo na pequena carroça que o pai tinha
andado a reparar nos fins de semana. Não levavam muita coisa, mas mesmo assim o
espaço era apertado.
Antes
de partir, deu uma volta pela casa. Ficavam para trás os móveis, os brinquedos
e tantas recordações! No último momento, ainda pegou na sua boneca preferida e
numa fotografia em que toda a família ria, muito feliz.
Todos
juntos, deram as mãos e, de lágrimas nos olhos, rezaram pela paz, pedindo a
Deus que protegesse o pai, o Youssef, e tantos amigos em perigo.
A
seguir, com novo ânimo, Miriam subiu para a carroça e puseram-se a caminho.
Havia muita gente apressada a correr pelas ruas. Carros buzinavam, em longas
filas, mas como a carroça era pequena, o avô conseguiu conduzi-los para fora da
cidade. Na estrada, o trânsito seguia lentamente. Na berma viam-se famílias em
volta dos carros parados com o motor avariado ou pneus furados. Muita gente
seguia a pé, sobretudo mulheres de ar cansado, com trouxas à cabeça e crianças
pela mão.
Havia
refugiados de todas as religiões. Alguns eram cristãos, como a família da sua
amiga Bibi, mas a maioria eram muçulmanos. Miriam procurava-a, olhando com
atenção para todos os lados, mas era impossível descobri-la no meio de tanta
gente. No entanto, tinha a certeza de que um dia viriam a encontrar-se. A Bibi
teria sempre um lugar especial no seu coração.
Quando
viram dois pequenos perdidos, o avô desceu e deu-lhes o seu lugar na carroça.
Eram mais dois para dividir a comida mas não podiam deixá-los para trás. Tinham
só 3 e 5 anos. Uma bomba tinha destruído a sua casa e não sabiam onde estavam
os pais.
No
seu banco de madeira, sacudida ao ritmo da passada do burrico, Miriam ia
triste, mas percebia como a sua família tinha sorte, comparada à de tantos
outros.
Até
que surgiram notícias terríveis. O Norte também estava sob ataque. Os tios e os
primos certamente também tinham fugido de casa.
Para
onde ir? Cada pessoa na estrada dava uma opinião diferente.
O
avô ouviu dizer que junto da fronteira com o país vizinho estavam a preparar campos
de refugiados.
-
É o que nós somos – disse ele tristemente -, refugiados de guerra. É para lá
que vamos. Talvez nos possam ajudar.
O
caminho era longo. Miriam e os dois rapazinhos morriam de calor durante o dia,
tinham sede e a comida que tinham levado já era pouca. À noite encolhiam-se no
chão junto à carroça abraçados uns aos outros para se protegerem do frio. (…)
Será
que iam mesmo encontrar ajuda? E o pai e o Youssef, onde estariam? E como se
iriam voltar a reunir?...
Por
vezes, o medo de não os voltar a ver era tão grande que não conseguia evitar
chorar. Mas todas as noites dava as mãos à mãe e ao avô, rezavam juntos e o seu
coração acalmava. Deus havia de mandar-lhes auxílio!
Muito
longe, quase no outro lado do mundo, Pip voltava a correr do jogo de futebol.
Entrou em casa e gritou:
-
Ganhámos!
Tinha
o cabelo despenteado e ainda estava corado de excitação.
A
mãe estava na sala a ver as notícias na televisão. Sorriu-lhe e abraçou-o,
dando-lhe os parabéns, mas via-se que estava triste. Tinha o terço entre as
mãos.
-
Que se passa? – perguntou o Pip preocupado.
-
Mais guerra no mundo, meu filho, mais razões para rezarmos. Gostava tanto de
fazer alguma coisa para ajudar!
-
Tu rezas tanto, mãe. Isso já é uma grande ajuda! – disse o Pip para a consolar.
“A
mãe é tão boa, o seu coração é do tamanho do mundo!” – pensou ele.
Pip
deu-lhe um beijinho na bochecha.
Nesse
instante aparecia na televisão a imagem do Papa, vestido de branco. Aumentaram
o som e ouviram só as últimas palavras: “Acolher os refugiados”, “acolher os
refugiados”, “acolher os refugiados”…
Aquelas
palavras pareciam ressoar na sala.
-
Temos uma casa tão grande – sussurrou a mãe.
-
O meu quarto tem uma cama a mais – respondeu o Pip.
-
Podíamos acolher refugiados! – exclamaram os dois ao mesmo tempo.
Abraçaram-se
emocionados. Era isso que iam fazer. Iam oferecer-se para receber uma família
inteira!
Naquele
momento, a televisão mostrava centenas de refugiados a encaminharem-se para um
enorme campo de tendas e contentores metálicos. Havia filas de pessoas doentes
em frente e uma tenda gigante com uma cruz vermelha no alto, onde médicos
voluntários trabalhavam sem parar. Noutra fila, viam-se milhares de pessoas com
uma lata na mão, à espera de comida. Uma jovem sorridente servia o que parecia
ser uma sopa e entregava um pão e uma fruta a cada um.
De
repente, a TV mostrou a cara de uma menina morena de grandes olhos verdes.
Levava pela mão dois rapazinhos. Atrás ia um velhote e uma mãe com um bebé ao
colo.
-
Como te chamas? – perguntou-lhe o repórter.
E
ela respondeu, com um sorriso de dentes brancos a iluminar a cara muito suja:
-
Miriam!
Passou
algum tempo. O Pip foi com a mãe inscrever-se no centro de apoio aos refugiados
que funcionava na sua paróquia. Deram os nomes e a morada. Depois, uma senhora
simpática que dirigia o serviço foi visitar a casa deles para se conhecerem
melhor. Mas tinham de esperar, porque havia muitos papéis e coisas complicadas
a tratar.
Um
dia disseram-lhes que havia uma família pronta para chegar! Tinham passado
tempos muito difíceis, procurando o pai, que ficara na cidade, e o irmão, que
fora ferido na guerra, mas finalmente tinham-se reunido num campo de
refugiados.
-
É um milagre – dizia o senhor prior. A cidade onde viviam e grande parte do
país tinham ficado destruídos, os telefones e a internet não funcionavam,
muitas estradas estavam cortadas e as pontes tinham sido derrubadas, mas Deus
tinha ajudado e estavam todos juntos, prontos para começar uma vida nova num
país que os recebesse.
-
E são boas pessoas – acrescentava o senhor prior. – Salvaram a vida de duas
crianças que estão agora numa casa onde os mais pequenos são tratados com muito
carinho.
Felizmente,
o pai da família e o filho mais velho falavam um pouco de inglês, o que
tornaria mais fácil comunicarem e ajudaria à adaptação de todos.
Pip
e a mãe lançaram-se ao trabalho, cheios de entusiasmo. Era preciso preparar a
casa para a chegada de tanta gente, e queriam que todos se sentissem bem
recebidos.
Os
vizinhos emprestaram uma caminha para o bebé, que ia ficar com os pais no
quarto de hóspedes. A mãe pintou de branco o escritório, trocou o sofá por duas
camas estreitas com colchas de cores alegres, e muitos livros que já tinham
sido lidos foram oferecidos à biblioteca pública, tornando-se as estantes num
belo armário para o avô e o filho mais velho.
Finalmente,
puseram uma parede a dividir em dois o grande quarto do Pip, e ele dedicou-se
durante vários dias para receber uma menina.
_
Nunca vi o teu quarto tão limpo e arrumado – elogiou a mãe.
-
É verdade, agora são dois quartos mais pequenos, mas até estão giros, não
estão? Pus as chuteiras que cheiravam a chulé no armário das vassouras – riu o
Pip. – E tirei da parede alguns cartazes de futebol para ela colar o que
quiser. Mas aposto que vai pôr umas coisas horrorosas todas em cor-de-rosa.
Fez
uma careta perante a ideia, mas logo a seguir abriu-se um sorriso de orelha a
orelha.
Na
verdade, achava divertido ter pela primeira vez uma rapariga em casa. Seria
como ter uma irmã mais nova.
No
dia combinado, o Pip e a mãe foram ao aeroporto com a senhora do serviço de
apoio aos refugiados, levando um cartaz com um nome esquisito escrito em letras
grandes.
Pip
sentia-se nervoso e ao mesmo tempo feliz. Lembrou-se do Papa na televisão a
dizer: “Acolher os refugiados.”
“Ele
ficaria contente se soubesse” – pensou.
De
repente, a senhora começou a acenar e a chamar:
-
Lá vêm eles! São eles!
Pip
viu um casal moreno, empurrando um carrinho de bagagens sobre o qual vinha um
bebé sorridente. Um rapaz novo de muletas coxeava ao lado de um velhote com ar
simpático. E uma menina de grandes olhos verdes, um pouco tímidos, saltitava de
excitação, olhando para tudo com ar de espanto.
“E
agora?” – pensou sobressaltado. – “Nem sequer falamos a mesma língua!”
A
família aproximou-se. A menina correu e foi a primeira a chegar ao pé deles.
Pip
apontou para si próprio e disse numa voz feliz:
-
Pip!
E
ela apontou para si própria e respondeu contente:
-
Miriam!
Ameal,
Theresa, in Os meus irmãos refugiados –
Amigos do outro lado do mundo. Lisboa: PAULUS Editora, 2018.
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