No âmbito do Dia Internacional em Memória das Vítimas do
Holocausto e da atividade “Leituras de porta-em-porta”, a Professora
Bibliotecária selecionou o seguinte texto que foi distribuído a docentes,
assistentes operacionais e administrativos. O livro está disponível na
Biblioteca Escolar.
No âmbito do Dia Internacional em
Memória das Vítimas do Holocausto e da atividade “Leituras de porta-em-porta”, a
Professora Bibliotecária selecionou o seguinte texto que foi distribuído a
docentes, assistentes operacionais e administrativos. O livro está disponível
na Biblioteca Escolar.
“No
dia seguinte, Lale apresenta-se nos serviços administrativos e é-lhe dito que
hoje está de folga. Não são esperados novos prisioneiros, seja em Auschwitz ou
em Birkenau, e o herr doctor também
não vai precisar dele. Passa a manhã com Leon. Subornou o seu antigo kapo no Bloco 7 para deixar Leon passar
o dia ali com ele, explicando que Leon irá ajudá-lo depois que recuperar as
forças. Dá-lhe a comida que planeava dar aos seus amigos ciganos e a Gita para
eles distribuírem.
Deixa Leon no quarto e sai do bloco e
então ouve Baretski chamá-lo.
- Tetovierer,
onde te meteste? Andava à tua procura.
- Disseram-me que hoje não trabalhava.
- Mas afinal trabalhas. Anda, temos
serviço.
- Tenho de ir buscar a minha pasta.
- Para este serviço não precisas das
tuas coisas. Anda.
Lale apressa-se a segui-lo.
Encaminham-se para um dos crematórios.
Lale aperta o passo até o alcançar.
- Onde vamos?
- Estás nervoso?! – Baretski ri-se.
- No meu lugar, não estaria?
- Não. – Lale sente um aperto no peito;
está com dificuldade em respirar. Deverá fugir? Se fizer isso, de certeza que
Baretski lhe dará um tiro. Mas e então? Que importância teria? Antes uma bala
que a câmara de gás. Estão já muito próximos do Crematório Três quando Baretski
resolve finalmente acabar-lhe com a angústia. Abranda. – Não te preocupes. Vá,
vem daí; ainda nos metemos os dois em sarilhos e acabamos na câmara de gás.
- Não se vão livrar de mim?
- Por enquanto, não. Parece que há dois
prisioneiros com o mesmo número. Temos de ir ver. Ou foste tu a tatuá-los ou
então foi o eunuco. Tens de nos dizer qual é qual.
- O edifício de tijolo ergue-se,
ameaçador, diante deles; se as janelas grandes disfarçam a sua função, o
tamanho das chaminés confirma a sua horripilante verdadeira natureza. À
entrada, esperam-nos dois soldados, que trocam piadas com Baretski e ignoram
Lale. Indicam-lhes umas portas fechadas mais adiante, para onde Baretski e Lale
se encaminham. Lale vai olhando em volta; se Birkenau é a estrada para a morte,
esta é a reta final. Vê por ali os sonderkommandos[1],
homens vergados, prontos a fazerem um trabalho para o qual ninguém neste
mundo se voluntariaria: tirarem os corpos das câmaras de gás e levarem-nos para
os fornos. Tenta fazer contacto visual com eles, fazer-lhes saber que também
ele trabalha para o inimigo. Também ele escolheu manter-se vivo enquanto
conseguir e, para isso, profana o corpo dos que professam a mesma fé que ele.
Nenhum o olha de volta. Já ouviu os outros prisioneiros falarem destes homens e
da sua posição privilegiada – têm um dormitório só para eles, recebem rações
extra e têm direito a roupa quente e a cobertores. Há semelhanças entre a
situação dos sonderkommando e a sua e
Lale fica de estômago apertado ao ocorrer-lhe que também ele poderá ser
desprezado pela sua tarefa no campo de concentração. Sem poder expressar a sua
solidariedade para com estes homens, segue o seu caminho.
São conduzidos até uma grande porta de
aço, diante da qual está um guarda.
- Não se preocupem, já não há gás aqui
dentro. Temos de os mandar para os fornos, mas só podemos fazer isso depois de
corrigidos os números.
- O guarda abre-lhes a porta.
Endireitando as costas, Lale olha Baretski nos olhos e, com um gesto, convida-o
a ir na frente.
- Tenha a bondade.
Baretski desata a rir à gargalhada e
dá-lhe uma palmada nas costas.
- Não, tu primeiro.
- Não, tenha a bondade – repete Lale.
- Eu insisto, tetovierer. - O guarda das SS abre as portas de par em par e entram
os dois para um espaço cavernoso. Está cheio de corpos, corpos nus às centenas.
Estão todos empilhados, os braços e as pernas contorcidos. Olhos inertes fitam
o vazio. Homens, novos e velhos; debaixo deles, as crianças. Sangue, vomitado,
urina e fezes. Paira o cheiro da morte. Lale está a tentar não respirar, mas já
lhe ardem os pulmões. As suas pernas ameaçam ceder. (…)
- Aqui – indica um soldado, e eles
seguem-no até um dos lados do espaço, onde estão estendidos dois corpos
masculinos. O soldado começa a falar com Baretski. Mas, por uma vez, o jovem
oficial está incapaz de falar; com um gesto, indica que Lale sabe alemão. – Têm
os dois o mesmo número. Como é possível? – pergunta o soldado. Lale apenas consegue
abanar a cabeça e encolher os ombros. Como
raio querem que eu saiba?! – Olha para eles. Qual dos dois tem o número
certo?! – pergunta o soldado, agora irritado.
- Lale baixa-se e agarra no braço de um
deles, grato por ter um motivo para se ajoelhar; só espera que isso o ajude a
controlar-se. Lê os dígitos tatuados.
- O outro…? – pede. Com modos rudes, o
braço do outro homem é-lhe estendido. Lale examina um número e outro. – Isto
não é um três, é um oito, vê? Está um pouco apagado, mas é um oito.
O guarda escrevinha os números corretos
naqueles dois braços frios. Sem pedir autorização, Lale põe-se de pé e abandona
o edifício. Baretski vem ter com ele cá fora, onde o encontra curvado e a fazer
um esforço para respirar fundo.
O jovem oficial aguarda um momento.
- Estás bem?
- Não, não estou bem. Malvados. Quantos mais de nós querem
vocês matar?!
- Estás enervado. Eu percebo. –
Baretski não passa de um miúdo, um miúdo sem instrução. Ainda assim, Lale não
pode deixar de se perguntar como é possível que ele não sinta nada por aquelas
pessoas que acabam de ver, a agonia da morte gravada nos seus rostos e nos seus
corpos contorcidos. – Anda, vamos embora – chama-o Baretski. Lale endireita-se
e acompanha-o, mesmo se não consegue olhar para ele. – Sabes uma coisa, tetovierer? Aposto que és o único judeu
que entrou num crematório e tornou a sair.
Dá uma gargalhada sonora e uma palmada
nas costas de Lale e adianta-se num passo vigoroso.”
Morris,
Heather, in O Tatuador de Auschwitz.
Trad. de Miguel Romeira. Lisboa: Editorial Presença, 2018.
[1] As
equipas que trabalhavam nos crematórios levavam os prisioneiros para as câmaras
de gás, depois retiravam os cadáveres e transportavam-nos para os crematórios;
asseguravam o funcionamento destes e, no fim, limpavam as cinzas. Estas equipas
eram maioritariamente constituídas por prisioneiros. (NT)
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