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domingo, 5 de maio de 2019

Leituras de porta em porta - Dia da Mãe


12 milímetros

Afasto o indicador do polegar e pergunto quanto cabe em 12 milímetros. Há uma voz metálica acima da minha cabeça que se prende às veias. Anuncia um destino familiar e, por isso, oculto. A forma como cresci diz-me que o passado será sempre um ângulo morto e o retorno devolve-me a minha figura filiforme nas janelas da carruagem do metro. Pouco conseguimos divisar através de nós.
            Sempre gostei de fazer listas. O futuro é tendencialmente ordenável. Pelo menos, enquanto permanecer futuro. Quanto cabe em 12 milímetros? A pergunta foi escrita no verso de uma conta de supermercado.
1.    A moeda que darei ao pedinte do metro que, vindo na minha direção, chocalha, cambaleante, a sua lata de esmolas.
2.    A íris humana e todas as formas do mundo.
3.    A aliança que usas no anelar da mão esquerda e uma promessa de até que a morte vos separe.
4.    A tua respiração à distância da minha boca.
5.    A linha do polígrafo na mentira.
6.    A réplica do sismo medida pela agulha.
7.    A abelha que visita 19 flores por minuto.
8.    O genoma humano: 72 viagens ida e volta ao Sol.
9.    150 bpm.
10.  37 795 276 píxeis.
11.  6 semanas e meia de vida.
12.  O fatal desencontro.
Por ora estava decidido. Não ia tê-lo. Se, fazendo ouvidos ao maniqueísmo da expressão, alguma mãe teve
um filho por inteiro. Nenhum ser humano poderá ter outro por inteiro.
            «Um embrião de 12 milímetros», informou-me o médico, «aparentemente saudável.» «Aqui vê o coração a bater», acrescenta.
            Ergui a cabeça da minha posição de rã, atenta ao ponto intermitente a que ele aludia. O cursor fez o mapeamento biológico, na tentativa de dissuasão.
            «Uma estrela anã condenada», comento.
            «E o pai? O que diz o pai?», pergunta o médico.
            «Os filhos pertencem às mães», respondo, «sabe disso.»
            Repeti para mim: os filhos pertencem às mães. A frase não tinha caducado, apesar do bilhete de identidade caducado.Com a renovação, no Arquivo de Identificação de Lisboa, a paternidade ultrapassou a fronteira da inscrição desbotada «filha ilegítima de pai incógnito» e passou a um espaço em branco de dois centímetros, depois de um asterisco. Os asteriscos remetem para um acrescento de informação complementar, clarificadora. Aqui se evidencia a correção da regra: o nome completo da mãe seguido de um asterisco e, logo depois, o espaço em branco. O espaço em branco clarificador, naturalmente. Fecundada por um espaço em branco, talvez certeiro fosse anunciá-lo como espaço em negro, dado que fechou os olhos à violação, recusou o desmancho, inscreveu a minha desconhecida proveniência na formalidade burocrática do Estado. O espaço em branco reconhece que nasci de um naufrágio, um surto da natureza na sua animalidade que transborda o humano. Até os naufrágios nos levam a lugares seguros. Esse lugar seguro era ela. Sempre foi. Ela com «m», uma letra em cujo dorso nos podemos deitar em posição fetal, como no espaço a preencher entre dois seios.
            Os soldados que morrem em batalha sem nome são soldados desconhecidos, alistados para a guerra; os pais espartilhados pela biologia são incógnitos. O desconhecido implica uma avaliação de terceiros, o incógnito implica um encobrimento planeado. Num caso, assinala-se a bravura; no outro a cobardia. Os pais ausentes não poderiam partilhar o léxico dos soldados.
            Antes e depois da escola, ia às cabras e encontrava naqueles bichos resilientes singularidades familiares. A pertença imprecisa, claro, o reconhecimento de que só possuíam o que esgravatavam com os cascos e a absoluta liberdade que os sem-ascendência possuem para subirem montes sem dono. Daí a expressão «ascendência familiar», nada casuística. Se nos corre no sangue a herança dos avós, não seria correto falar de transcendência familiar? Porém, sabemos que a ascendência aterra sobre a nossa ossada, não se dilui como um rio contínuo espiritual. Pesa. Um peso inaceitável para almas cabris como a minha. O passado é um ângulo morto. Ou, apenas, o passado é morto.
            A Ermelinda ia comigo às cabras. Entretinha-se a arreliar os animais e ria-se das minhas imitações mal feitas dos balidos. Mas ao contrário de mim, que quando subia o monte nas águas de novembro só deixava calcos de lama, não mais valiosos que as caganitas das cabras, ela tinha pegadas de luz. «Andas com a filha de ninguém, anda pra casa já, Ermelinda», gritava-lhe o pai, lá de baixo da estrada. Ela, hesitante, acabava por ir. Deixando no encalço um pó doirado de anjo, que se lhe libertava dos cachos dos cabelos.
            «Não sou filha de ninguém, não senhor», corrigi, «sou filha de Deus e, por isso, a minha mãe me deu o nome que tenho.» A Ermelinda deixou de aparecer no monte e eu fui obrigada a dar esta explicação na soleira da casa da família dela. O pai olhou-me de cima, antes de deixar o riso abdominal ser som. Enxotou-me depois de me corrigir: «Da forma como foste feita em pecado, mais depressa és filha do diabo.»
            Voltava a casa, deitava-me na melodia que ela cantava no tanque, almofadava medos no cheiro a sabão, como se os pusesse de molho. Nunca me agradou associar estados de espírito a meteorologia, mas ela era uma mulher sem névoas, sem nuvens carregadas, imune a estados de condensação, outro nome para envelhecer. Confundi durante anos esta alegria com ligeireza, não lhe chamem leveza, nada nela era leve, a começar pelas pernas fecundas de afazeres, dois talos unidos ao centro da Terra. Uma pessoa sem raízes. Apenas tronco e sólidos galhos para meu repouso. Não era gorda, os gordos são disformes e difusos nos acabamentos. Os contornos da minha mãe eram precisos como uma estátua de bronze que me fazia recuar, um pé atrás, um muro de contenção, para lhe admirar o peso.
            «Cresceste sem pai, faz sentido que não queiras que o teu filho cresça sem pai», os outros sempre tão lestos a encontrar ordem, razões, presunções, ilações. «Não te julgues.»
            «E o que fazer com os julgamentos alheios?», riposto brandamente. Serve-me, na verdade, a justificação, que traja sem dificuldade, gola abrangente, passa bem na cabeça.
            «Mas tens razão, não quero que o miúdo cresça sem pai», anuí. «E o filho da puta não vai largar a vivenda, a piscina, a mulher tonificada, os legítimos e o beagle para vir mudar fraldas e pôs a arrotar nos Olivais.»
            A verdade está noutro lugar. «Maternidade» é das palavras que se vestem com o pelo virado para dentro e, sem pejo, eu só vomito vidro. As mães em gestação têm uma luz especial no rosto, comentam as revistas. Indício de que se vão consumir como cotos de velas na iluminação de caminhos alheios. Enconchar é trabalho de mãe, o tempo todo, a proteger o pequeno pavio vivo. A minha lamparina seria bruxuleante e indecisa, não aqueceria como a de Jorge de Sena, e serviria para aclarar a visão do negro infinito que nos cerca. Uma luz mais assustadora do que o sólido negrume.
            Chego a casa e tiro os sapatos, vou ao frigorífico e saco a cápsula de uma cerveja sem álcool. Sabe a água de lavar copos, com um travo adocicado. Digo em voz alta: «que merda». Mas de onde vem este respeito por quem não vai nascer? Que mal fará à estrela em extinção uns gramas de álcool? Todos os seres vivos, enquanto vivos, merecem respeito, penso para mim quando me sento no sofá. Sem prestar atenção ao que faço, ponho a mão sobre a barriga, alguns centímetros abaixo do umbigo. Descanso-a ali, pousada. Com a outra mão, livro-me da cerveja.
            Todos os seres vivos, enquanto vivos, merecem respeito e todos deveriam ser amados pelo menos uma vez. Verbalizo, então: «Saber da tua existência inclinou o universo.»
            A estrela anã nunca ouvirá os sons do mundo, só acontece aos seis meses de gestação. Mas é um conforto saber que há menos matéria viva que morrerá sem ser amada por uma vez. E, se amado não é o termo, há o aconchego do enlevo.
            Nunca o disse desta forma, porque também para sentir precisamos de palavras e, naquele tempo, desconhecia os vocábulos do meu sentir. Mas nos primeiros anos, a ausência dele pareceu-me uma mentira que os adultos contam. A sua inexistência era uma efabulação semelhante às que asseveravam a existência de outras criaturas da ordem do onírico. Os adultos inventaram o bicho-papão com a mesma ligeireza com que apagaram a sua existência. Se haveria seres que, não existindo, ganhavam dimensão real, o contrário seria plausível. O portão de ferro da casa sempre entreaberto seria a prova de uma ausência repentina. Ele era o tapete engelhado por baixo dos pés da cadeira, oblíqua à mesa, arrastada por um afazer. Aguardávamos o retorno previsível do seu ocupante. A minha vontade mantinha o assento morno de calor humano.
            «Todos os órgãos estão formados às 13 semanas?», pergunto, descendo da cadeira de observação.
            «Mas os pulmões só funcionam ao nascimento. É através do choro, no parto, que respiramos pela primeira vez», sumariza o médico.
            «O sofrimento como veículo da primeira inspiração. A biologia quis fazer de nós todos poetas», ironizo.
            «Na verdade», esclarece de olhos no computador, «já há movimentos de diafragma observáveis nos últimos meses de gestação.»
            Saí do consultório com a data em que nos iríamos separar. Eu voltaria a casa de transportes públicos - «um procedimento simples, indolor, algumas horas de recobro, vida normal»; tu deixarias de ser. Nunca te tive, mas decidi sobre o teu fim. Não quero parecer plangente ou justificativa. Nada que atenue o ónus de uma decisão unilateral.
            No dia agendado para o procedimento, o metro apitou na estação de sempre. Dois quarteirões transpostos, seguir-se-ia a porta da clínica, a campainha rouca, a recepcionista com sinusite, o clarão negro antes do fim, talvez me visse em sonhos deitada na canção do tanque. Permaneci, porém, sentada. Ia jurar que o coração me tinha caído para o fundo do estômago e ressoava na pelve. As estações sucederam-se como numa novena e eu rezei-as baixinho, até ao limite da linha. A previsibilidade da sequência tranquilizou-me. Com pressa, todos abandonaram a carruagem, deixando-me na refração que só as lágrimas permitem. O mundo ficou expandido e sem contornos o que me ajudou a respirar melhor. Foi nesse momento que a vi de costas. Mesmo se sozinha na gare, e passados todos estes anos, saberia reconhecê-la. Ali, no torvelinho da hora de ponta, rebaixava tudo com a sua luz natural.
            Abraçamo-nos comovidas e humedeci-lhe os cachos loiros. Libertei-a com receio, assustada com a possibilidade de a ver desaparecer na próxima carruagem e eu, no limite da linha como noutros tempos na soleira da porta, desejaria vê-la novamente.
            «Vamos tomar um café», pediu Ermelinda, «quero saber tudo sobre vocês.» Tinha pousado a mão sobre a minha, que descansava alguns centímetros abaixo do umbigo.

  

Martins, Filipa, «12 milímetros» in Mães que tudo. Lisboa: Companhia das Letras, 2019.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

“Piratas” na BE






O Cacém foi “atacado” por um grupo de piratas que chegou à biblioteca da Escola Básica e Secundária de Gama Barros em busca de um dos maiores tesouros conhecidos- o Conhecimento.
À semelhança de anos letivos anteriores, “Os Piratas” de Manuel António Pina andaram pela biblioteca e trouxeram consigo muitos adereços que faziam parte do seu quotidiano. Um dos desafios lançados pela professora bibliotecária aos alunos do 6.º ano foi o de tentarem “descobrir” alguns dos segredos desses objetos. Numa dinâmica de trabalho de pares, em que foi fundamental a concentração e a capacidade de memorização, os alunos foram também sujeitos a uma espécie de teste de ortografia.
Uma atividade muito dinâmica em que a rapidez também esteve à prova e em que se descobriram muitas curiosidades sobre a vida dos piratas.