12
milímetros
Afasto o indicador do polegar e pergunto
quanto cabe em 12 milímetros. Há uma voz metálica acima da minha cabeça que se
prende às veias. Anuncia um destino familiar e, por isso, oculto. A forma como cresci
diz-me que o passado será sempre um ângulo morto e o retorno devolve-me a minha
figura filiforme nas janelas da carruagem do metro. Pouco conseguimos divisar
através de nós.
Sempre gostei de fazer listas. O
futuro é tendencialmente ordenável. Pelo menos, enquanto permanecer futuro. Quanto
cabe em 12 milímetros? A pergunta foi escrita no verso de uma conta de
supermercado.
1. A moeda que
darei ao pedinte do metro que, vindo na minha direção, chocalha, cambaleante, a
sua lata de esmolas.
2. A íris humana e todas
as formas do mundo.
3. A aliança que
usas no anelar da mão esquerda e uma promessa de até que a morte vos separe.
4. A tua respiração
à distância da minha boca.
5. A linha do
polígrafo na mentira.
6. A réplica do
sismo medida pela agulha.
7. A abelha que
visita 19 flores por minuto.
8. O genoma humano:
72 viagens ida e volta ao Sol.
9. 150 bpm.
10. 37 795 276
píxeis.
11. 6 semanas e meia
de vida.
12. O fatal
desencontro.
Por ora estava
decidido. Não ia tê-lo. Se, fazendo ouvidos ao maniqueísmo da expressão, alguma
mãe teve
um
filho por inteiro. Nenhum ser humano poderá ter outro por inteiro.
«Um embrião de 12 milímetros»,
informou-me o médico, «aparentemente saudável.» «Aqui vê o coração a bater»,
acrescenta.
Ergui a cabeça da minha posição de
rã, atenta ao ponto intermitente a que ele aludia. O cursor fez o mapeamento
biológico, na tentativa de dissuasão.
«Uma estrela anã condenada»,
comento.
«E o pai? O que diz o pai?»,
pergunta o médico.
«Os filhos pertencem às mães»,
respondo, «sabe disso.»
Repeti para mim: os filhos pertencem
às mães. A frase não tinha caducado, apesar do bilhete de identidade
caducado.Com a renovação, no Arquivo de Identificação de Lisboa, a paternidade
ultrapassou a fronteira da inscrição desbotada «filha ilegítima de pai
incógnito» e passou a um espaço em branco de dois centímetros, depois de um
asterisco. Os asteriscos remetem para um acrescento de informação complementar,
clarificadora. Aqui se evidencia a correção da regra: o nome completo da mãe
seguido de um asterisco e, logo depois, o espaço em branco. O espaço em branco
clarificador, naturalmente. Fecundada por um espaço em branco, talvez certeiro
fosse anunciá-lo como espaço em negro, dado que fechou os olhos à violação,
recusou o desmancho, inscreveu a minha desconhecida proveniência na formalidade
burocrática do Estado. O espaço em branco reconhece que nasci de um naufrágio,
um surto da natureza na sua animalidade que transborda o humano. Até os
naufrágios nos levam a lugares seguros. Esse lugar seguro era ela. Sempre foi.
Ela com «m», uma letra em cujo dorso nos podemos deitar em posição fetal, como
no espaço a preencher entre dois seios.
Os soldados que morrem em batalha
sem nome são soldados desconhecidos, alistados para a guerra; os pais
espartilhados pela biologia são incógnitos. O desconhecido implica uma
avaliação de terceiros, o incógnito implica um encobrimento planeado. Num caso,
assinala-se a bravura; no outro a cobardia. Os pais ausentes não poderiam
partilhar o léxico dos soldados.
Antes e depois da escola, ia às
cabras e encontrava naqueles bichos resilientes singularidades familiares. A
pertença imprecisa, claro, o reconhecimento de que só possuíam o que
esgravatavam com os cascos e a absoluta liberdade que os sem-ascendência
possuem para subirem montes sem dono. Daí a expressão «ascendência familiar»,
nada casuística. Se nos corre no sangue a herança dos avós, não seria correto
falar de transcendência familiar? Porém, sabemos que a ascendência aterra sobre
a nossa ossada, não se dilui como um rio contínuo espiritual. Pesa. Um peso
inaceitável para almas cabris como a minha. O passado é um ângulo morto. Ou,
apenas, o passado é morto.
A Ermelinda ia comigo às cabras.
Entretinha-se a arreliar os animais e ria-se das minhas imitações mal feitas
dos balidos. Mas ao contrário de mim, que quando subia o monte nas águas de
novembro só deixava calcos de lama, não mais valiosos que as caganitas das
cabras, ela tinha pegadas de luz. «Andas com a filha de ninguém, anda pra casa
já, Ermelinda», gritava-lhe o pai, lá de baixo da estrada. Ela, hesitante,
acabava por ir. Deixando no encalço um pó doirado de anjo, que se lhe libertava
dos cachos dos cabelos.
«Não sou filha de ninguém, não
senhor», corrigi, «sou filha de Deus e, por isso, a minha mãe me deu o nome que
tenho.» A Ermelinda deixou de aparecer no monte e eu fui obrigada a dar esta
explicação na soleira da casa da família dela. O pai olhou-me de cima, antes de
deixar o riso abdominal ser som. Enxotou-me depois de me corrigir: «Da forma
como foste feita em pecado, mais depressa és filha do diabo.»
Voltava a casa, deitava-me na
melodia que ela cantava no tanque, almofadava medos no cheiro a sabão, como se
os pusesse de molho. Nunca me agradou associar estados de espírito a
meteorologia, mas ela era uma mulher sem névoas, sem nuvens carregadas, imune a
estados de condensação, outro nome para envelhecer. Confundi durante anos esta
alegria com ligeireza, não lhe chamem leveza, nada nela era leve, a começar
pelas pernas fecundas de afazeres, dois talos unidos ao centro da Terra. Uma
pessoa sem raízes. Apenas tronco e sólidos galhos para meu repouso. Não era
gorda, os gordos são disformes e difusos nos acabamentos. Os contornos da minha
mãe eram precisos como uma estátua de bronze que me fazia recuar, um pé atrás,
um muro de contenção, para lhe admirar o peso.
«Cresceste sem pai, faz sentido que
não queiras que o teu filho cresça sem pai», os outros sempre tão lestos a
encontrar ordem, razões, presunções, ilações. «Não te julgues.»
«E o que fazer com os julgamentos
alheios?», riposto brandamente. Serve-me, na verdade, a justificação, que traja
sem dificuldade, gola abrangente, passa bem na cabeça.
«Mas tens razão, não quero que o
miúdo cresça sem pai», anuí. «E o filho da puta não vai largar a vivenda, a
piscina, a mulher tonificada, os legítimos e o beagle para vir mudar fraldas e
pôs a arrotar nos Olivais.»
A verdade está noutro lugar.
«Maternidade» é das palavras que se vestem com o pelo virado para dentro e, sem
pejo, eu só vomito vidro. As mães em gestação têm uma luz especial no rosto, comentam
as revistas. Indício de que se vão consumir como cotos de velas na iluminação
de caminhos alheios. Enconchar é trabalho de mãe, o tempo todo, a proteger o
pequeno pavio vivo. A minha lamparina seria bruxuleante e indecisa, não
aqueceria como a de Jorge de Sena, e serviria para aclarar a visão do negro
infinito que nos cerca. Uma luz mais assustadora do que o sólido negrume.
Chego a casa e tiro os sapatos, vou
ao frigorífico e saco a cápsula de uma cerveja sem álcool. Sabe a água de lavar
copos, com um travo adocicado. Digo em voz alta: «que merda». Mas de onde vem
este respeito por quem não vai nascer? Que mal fará à estrela em extinção uns
gramas de álcool? Todos os seres vivos, enquanto vivos, merecem respeito, penso
para mim quando me sento no sofá. Sem prestar atenção ao que faço, ponho a mão
sobre a barriga, alguns centímetros abaixo do umbigo. Descanso-a ali, pousada.
Com a outra mão, livro-me da cerveja.
Todos os seres vivos, enquanto
vivos, merecem respeito e todos deveriam ser amados pelo menos uma vez.
Verbalizo, então: «Saber da tua existência inclinou o universo.»
A estrela anã nunca ouvirá os sons
do mundo, só acontece aos seis meses de gestação. Mas é um conforto saber que
há menos matéria viva que morrerá sem ser amada por uma vez. E, se amado não é
o termo, há o aconchego do enlevo.
Nunca o disse desta forma, porque
também para sentir precisamos de palavras e, naquele tempo, desconhecia os
vocábulos do meu sentir. Mas nos primeiros anos, a ausência dele pareceu-me uma
mentira que os adultos contam. A sua inexistência era uma efabulação semelhante
às que asseveravam a existência de outras criaturas da ordem do onírico. Os
adultos inventaram o bicho-papão com a mesma ligeireza com que apagaram a sua
existência. Se haveria seres que, não existindo, ganhavam dimensão real, o
contrário seria plausível. O portão de ferro da casa sempre entreaberto seria a
prova de uma ausência repentina. Ele era o tapete engelhado por baixo dos pés
da cadeira, oblíqua à mesa, arrastada por um afazer. Aguardávamos o retorno
previsível do seu ocupante. A minha vontade mantinha o assento morno de calor
humano.
«Todos os órgãos estão formados às
13 semanas?», pergunto, descendo da cadeira de observação.
«Mas os pulmões só funcionam ao
nascimento. É através do choro, no parto, que respiramos pela primeira vez»,
sumariza o médico.
«O sofrimento como veículo da
primeira inspiração. A biologia quis fazer de nós todos poetas», ironizo.
«Na verdade», esclarece de olhos no
computador, «já há movimentos de diafragma observáveis nos últimos meses de
gestação.»
Saí do consultório com a data em que
nos iríamos separar. Eu voltaria a casa de transportes públicos - «um
procedimento simples, indolor, algumas horas de recobro, vida normal»; tu
deixarias de ser. Nunca te tive, mas decidi sobre o teu fim. Não quero parecer
plangente ou justificativa. Nada que atenue o ónus de uma decisão unilateral.
No dia agendado para o procedimento,
o metro apitou na estação de sempre. Dois quarteirões transpostos, seguir-se-ia
a porta da clínica, a campainha rouca, a recepcionista com sinusite, o clarão
negro antes do fim, talvez me visse em sonhos deitada na canção do tanque.
Permaneci, porém, sentada. Ia jurar que o coração me tinha caído para o fundo
do estômago e ressoava na pelve. As estações sucederam-se como numa novena e eu
rezei-as baixinho, até ao limite da linha. A previsibilidade da sequência
tranquilizou-me. Com pressa, todos abandonaram a carruagem, deixando-me na
refração que só as lágrimas permitem. O mundo ficou expandido e sem contornos o
que me ajudou a respirar melhor. Foi nesse momento que a vi de costas. Mesmo se
sozinha na gare, e passados todos estes anos, saberia reconhecê-la. Ali, no
torvelinho da hora de ponta, rebaixava tudo com a sua luz natural.
Abraçamo-nos comovidas e
humedeci-lhe os cachos loiros. Libertei-a com receio, assustada com a
possibilidade de a ver desaparecer na próxima carruagem e eu, no limite da
linha como noutros tempos na soleira da porta, desejaria vê-la novamente.
«Vamos tomar um café», pediu
Ermelinda, «quero saber tudo sobre vocês.» Tinha pousado a mão sobre a minha,
que descansava alguns centímetros abaixo do umbigo.
Martins, Filipa,
«12 milímetros» in Mães que tudo. Lisboa:
Companhia das Letras, 2019.
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