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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Canção de Embalar de Auschwitz foi o livro escolhido para o “Leituras de porta em porta” do “Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto”





O excerto escolhido para mais um “Leituras de porta em porta” descreve o horror vivido por vários milhares de prisioneiros ciganos durante a viagem para Auschwitz.
Canção de Embalar de Auschwitz é um livro inspirado em factos verídicos e relata a história de uma enfermeira alemã, Helene Hanneman, casada com um cigano de quem tem quatro filhos. Tudo começa quando as tropas vão a sua casa para levar o seu marido e os seus filhos para um campo de concentração e Helene é informada de que poderá não os acompanhar uma vez que é alemã. Apenas o seu marido e os seus filhos são alvo da detenção por serem ciganos. Helene acaba por acompanhar voluntariamente a sua família e tudo fará em Auschwitz para tentar minimizar as condições desumanas neste local de horror, nomeadamente criar uma creche no campo cigano onde, apesar de tudo, conseguirá pequenos privilégios para os mais pequenos durante algumas horas do dia.   
Um relato comovente em que se entrelaçam a vida de prisioneiros ciganos, judeus e alemães, que lutam por sobreviver no inferno do maior campo de extermínio da História.

Uma vez mais, os alunos monitores tiveram a seu cargo a tarefa de distribuir o texto pelos diferentes elementos da comunidade escolar. Desta vez competia-lhes, também, a explicação sobre o significado do triângulo castanho que acompanhava o texto. Todos os prisioneiros eram identificados por meio de símbolos. A estrela amarela para os judeus, o triângulo vermelho para os comunistas, o triângulo rosa para os homossexuais,  por exemplo. O triângulo castanho era o símbolo dos ciganos nos campos de concentração. 




Aqui fica o texto e algumas fotografias do processo de oferta dos textos ao longo do dia.

"A caminho de Auschwitz, maio de 1943

         Tudo aconteceu muito rápido. Na zona de carga e descarga da estação havia centenas de pessoas coladas à plataforma. Ao princípio sentimo-nos um pouco aturdidos. Os polícias tinham-nos deixado em frente a uns soldados das SS e estes, aos empurrões, levaram-nos até ao interior da estação. Estranhei ver um comboio de gado de cor castanho-escuro com as portas abertas, mas não demorei a compreender o que aquela gente pretendia. Continuava com Adalia nos braços, mas agora agarrava com a outra mão as mãozinhas frias e suadas dos dois gémeos. Os mais velhos estavam agarrados às malas que o meu marido segurava com força. Os soldados começaram a empurrar-nos e a plataforma foi-se esvaziando à medida que, com dificuldade, as pessoas entravam nos vagões. Johann deixou as malas de lado e ajudou Blaz e Otis a subir. Depois levantou os gémeos e colocou-os dentro do vagão. Nesse momento, a pressão das pessoas começou a arrastar-me para diante. Johann tinha subido para dentro do vagão para que lhe passasse a menina, mas mal conseguia manter-me em frente à porta. O meu marido pegou em Adalia, mas eu estava cada vez mais longe deles. Angustiada, abri passagem aos empurrões. Mulheres, homens e crianças como uma maré humana aterrorizada arrastavam-me para os outros vagões, mas não podia deixar a minha família sozinha. Agarrei-me com todas as minhas forças a uma barra do vagão e dei um salto, fiquei suspensa por uns segundos por cima das cabeças da multidão, mas depressa senti uma forte pancada nas costas. Virei-me e vi um soldado das SS com um bastão que tentava fazer-me descer daquele lugar. O meu marido observou a cena, agarrou-se às madeiras do vagão e aproximou-se de mim estendendo o braço. Olhei-o por uns instantes, senti uma segunda pancada que quase me fez cair entre a multidão, mas consegui agarrar a mão de Johann e ele conseguiu puxar-me para dentro do vagão.
            O cheiro nauseabundo quase me fez vomitar, mas recompus-me e, com a ajuda do meu marido, conseguimos arranjar um lugar para que as crianças se pudessem sentar sobre a palha com um pestilento fedor a humidade e ferrugem. Johann e eu tivemos de ficar de pé, com noventa e seis pessoas no vagão era impossível que todos nos pudéssemos sentar.
            O comboio começou a mover-se lentamente e estivemos prestes a perder o equilíbrio, mas os corpos amontoados impediam-nos de cair ao chão. Aquele inferno estava prestes a começar.
            Todos os ocupantes do vagão eram zíngaros como o meu marido. Ao princípio as pessoas tentaram levar as coisas com calma, mas à medida que as horas passavam surgiram as discussões e os confrontos. A sede começou a ser um problema a partir de quatro ou cinco horas de viagem. Os bebés gritavam desesperados, as crianças tinham fome e os idosos começavam a cair desmaiados pelo esgotamento e a postura incómoda. O vagão não parava de solavancar e saltar. Sentíamos muito frio apesar de estarmos no início de maio; os fins de tarde eram gélidos na Alemanha e dirigíamo-nos mais para norte.
            Quando chegou a noite, a gritaria apoderara-se do vagão, até que um dos idosos ciganos começou a gritar na sua língua ancestral. O idoso conseguiu que os ânimos se acalmassem um pouco. O meu marido com alguns homens ajudou a organizar o vagão e a improvisar uma espécie de retrete ao fundo, com um balde e uma manta que estava pendurada no teto, para pelo menos haver um pouco de privacidade.
            Aproveitei para dar aos meus filhos um pouco de comida e beberam uns goles de leite por turnos. Os dois mais velhos deitaram-se sobre a palha e os três mais pequenos aninharam-se aos seus pés e a menina entre eles.
            Não havia luz, mas também não era necessário para imaginar os rostos preocupados e as expressões de extrema tristeza de todos os viajantes. As condições em que nos transportavam não nos permitiam ter muitas ilusões de como seria o lugar para onde nos dirigíamos. Quando Johann regressou não pude resistir mais e comecei a chorar. Tentei afagar os meus lamentos no seu casaco, para que as crianças não acordassem. Mas aquilo não me consolava e mesmo quando ia desafogando os meus soluços sentia-me cada vez mais desesperada.
            - Não chores, querida. Certamente que as coisas irão melhorar quando chegarmos ao acampamento. Em 1936 muitos ciganos foram internados para a celebração dos Jogos Olímpicos e passados poucos meses deixaram-nos regressar a casa – disse Johann com um tom suave. (…)
            - Os roma somos perseguidos há centenas de anos e sempre sobrevivemos, também conseguiremos sair desta – disse Johann acariciando-me a face. (…)
            Na manhã seguinte parámos algumas horas em Pruszców. Foi a confirmação de que nos encontrávamos na Polónia. A sede começava a deixar-nos desesperados, o cheiro a vómito, urina e sedimentos invadia tudo, convertendo o ar numa coisa quase irrespirável. Então um rumor correu por todo o vagão, um soldado das SS tinha aparecido pela única janela que havia no vagão. As pessoas suplicavam-lhe por água e um pouco de comida.
            - Deem-me tudo o que tiverem de valor! – gritou com uma luger na mão.
            O meu marido ajudou os viajantes arrecadando relógios de pulso, anéis e outras joias para que aquele tipo nos desse um pouco de água fresca. Um balde de água para quase cem pessoas era muito pouca quantidade. Dava apenas um pequeno sorvo a cada um de nós. As pessoas gemiam desesperadas pela água, perdendo os últimos bons modos que ainda tinham tentado manter. Quando chegou a nossa vez, primeiro bebeu Adalia, apenas uns sorvos, depois os gémeos e por último Otis. O mais velho observou-me com os lábios ressequidos pela sede. Depois passou-me o balde sem provar a água. Blaz compreendia que havia doentes e bebés que necessitavam mais do que ele. Aquilo quase que fez com que me saltassem as lágrimas. Sentia-me muito orgulhosa pela sua coragem: era capaz de suportar a sua sede para que outros pudessem saciar a deles.
            Durante a tarde do segundo dia várias crianças tinham febre alta e alguns dos idosos pareciam realmente doentes. Estávamos quase há um dia e meio sem beber água e sem comer, além disso mal tínhamos dormido.
            A segunda noite foi ainda mais terrível do que a primeira. Um idoso chamado Roth sofreu um ataque de coração e caiu mesmo ao nosso lado. Não pudemos fazer nada para o reanimar, as crianças começaram a ficar assustadas, mas conseguimos que adormecessem de novo.(…)
            Aproximei-me das tábuas de madeira da parede e tentei olhar por uma das frestas. Pude contemplar uma grande estação com uma espécie de torre central. O comboio deteve-se uns minutos e as pessoas começaram a mover-se. Pusemo-nos de novo em marcha e entrámos por uma espécie de pequeno arco. Do outro lado, uma longa cerca com puas, segura por dezenas de postes de cimento, ladeava as vias. Uns potentes holofotes iluminavam o acampamento por completo. Aquele lugar parecia-nos imenso e rude, mas pelo menos era um lugar onde viver e onde se podia escapar daquele comboio infernal.
            As pessoas inquietaram-se ao ver que estávamos parados, mas durante quase quatro horas ninguém se aproximou do nosso comboio e, levados pelo esgotamento, todos se foram aninhando uns em cima dos outros, tentando estar o mais afastados possível dos cadáveres e dormir um pouco. (…)
            Enquanto a minha família dormia intranquila, quase nas fronteiras da agonia, comecei a chorar em silêncio. Sentia-me culpada por não ter previsto que a loucura dos nazis acabaria por nos alcançar, devíamos ter fugido para Espanha ou para a América, para nos afastarmos o máximo possível da terrível loucura que se apoderara do nosso país e de quase todo a Europa. Sempre quis acreditar que no final as pessoas se dariam conta do que Hitler e os seus sequazes representavam, mas não foi assim. Todos os seguiram na sua loucura fanática e converteram o mundo num inferno de guerra e fome.
            Quando o dia decidiu aparecer no horizonte ouvimos latidos e passos sobre o cascalho que rodeava as vias. Meia centena de soldados, um oficial das SS e um intérprete que repetia as suas ordens em várias línguas despertaram todo o comboio.
            As pessoas encontravam-se desejosas de abandonar o nosso inferno particular, sem estarem ainda conscientes de que entravam noutro ainda pior.
            - Quietos – disse às crianças. Elas olharam-me tranquilas. Estavam muito cansadas, embora sentissem curiosidade pelo que as esperava lá fora.
            Depois do vagão se esvaziar, o meu marido pegou nas malas e antes de descer olhámos para ambos os lados. Uma grande multidão descia rapidamente dos comboios. Em baixo, os soldados das SS e uns prisioneiros vestidos com uniformes às riscas pediam cordialmente que nos colocássemos em filas separadas.
            - Desçam, rápido! – gritou-nos um dos soldados.
            O meu marido deu um salto e depois ajudou-nos a descer a todos. Sentia as pernas débeis e uma sensação desagradável nos ossos, como se o frio daquele lugar penetrasse até ao mais profundo do meu ser. Os soldados das SS tinham cães e levavam bastões nas mãos, mas nenhum parecia com intenção de os usar. Uns metros mais adiante viam-se torres de vigilância, e ao fundo umas grandes chaminés, mas a multidão apenas nos permitia contemplar o que se encontrava mais perto.
            Dividiram-nos em dois grandes grupos. Puseram as mulheres e as crianças para um lado e colocaram todos os homens para outro. Ao princípio tentei resistir à separação de Johann, agarrei a sua mão até que um dos prisioneiros se aproximou e com voz suave disse-me:
            - Vê-lo-á mais tarde. Não se preocupe, senhora.
            O meu marido passou-me as malas e ficou na outra fila. Olhava-nos e tentou sorrir para nos tranquilizar, mas os seus lábios franzidos pretendiam dissimular uma angústia quase insuportável.
            - Para onde levam o papá? – perguntou Emily, enquanto esfregava os seus olhos irritados.
            Não soube o que responder. Ficara sem palavras, a dor deixara-me muda, como se a minha mente já não pudesse suportar aquela situação sem sentido. Limitei-me a acariciar a sua cabeça e baixar a vista para que não desse conta das minhas lágrimas.
            - Os homens dos vinte aos quarenta anos virão connosco – disse um dos oficiais das SS.
            O grupo dividiu-se em dois e contemplei como Johann se afastava. Ao estar entre os primeiros apenas pude observar durante uns segundos as suas costas largas, com o cabelo preto e encaracolado metido em parte pelo colarinho da sua camisa. O meu marido tinha ocupado toda a minha existência durante quase quinze anos. Senti-me como se me arrancassem as entranhas quando se puseram a andar. A vida não merecia a pena ser vivida sem ele. Depois olhei para os meus filhos. Observavam-me com os seus olhos muito abertos, como se tentassem esquadrinhar a minha alma. Então soube que ser mãe era muito mais do que criar os filhos, consistia em dobrar a alma até que o eu se confundisse para sempre com os seus belos rostos inocentes. O grupo de homens já estava a certa distância enquanto mordia os lábios para não chorar. Johann caminhava dentro da formação, ocultando-me o seu rosto. Pedi ao céu para o ver pela última vez. Os soldados empurravam-nos e apressavam-nos, mas pelo menos Johann, por um instante, atreveu-se a virar-se e os seus olhos despediram-se de mim, tentando suprir com aquelas bonitas pupilas a falta das suas palavras."



Escobar, Mario, in Canção de Embalar de Auschwitz. Madrid: HarperCollins, 2016.













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