Para assinalar o
centenário do nascimento da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, a
Biblioteca Escolar dinamizou mais umas "Leituras de porta em porta"
desta vez com "Homero", um dos textos do livro "Contos
Exemplares", uma coletânea publicada pela 1.ª vez em 1962. Este belíssimo texto faz uma comparação entre
Homero e o Homem, figura central do texto. Ambos cantam os seus poemas.
Aqui fica o texto para que possa usufruir da beleza e da sonoridade
das palavras criteriosamente escolhidas por Sophia.
Homero
Quando
eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem
chamavam o Búzio.
O Búzio era como um monumento
manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e ondulada
era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram
iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era
baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco. Os seus olhos, como o
próprio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes mesmo os vi
roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas.
Eram daquelas conchas brancas e grossas
com círculos acastanhados, semi-redondas e semitriangulares, que têm no vértice
da parte triangular um buraco. O Búzio passava um fio através dos buracos,
atando assim as conchas uma à outra, de maneira a formar com elas umas
castanholas. E era com essas castanholas que ele marcava o ritmo dos seus
longos discursos cadenciados, solitários e misteriosos como poemas.
O Búzio aparecia ao longe. Via-se
crescer dos confins dos areais e das estradas. Primeiro julgava-se que fosse
uma árvore ou um penedo distante. Mas quando se aproximava via-se que era o
Búzio.
Na mão esquerda trazia um grande pau
que lhe servia de bordão e era seu apoio nas longas caminhadas e sua defesa
contra os cães raivosos das quintas. A este pau estava atado um saco de pano,
dentro do qual ele guardava os bocados secos do pão que lhe davam e os tostões.
O saco era de chita remendada e tão desbotada pelo sol que quase se tornara
branca.
O Búzio chegava de dia, rodeado de luz
e de vento, e dois passos à sua frente vinha o seu cão, que era velho,
esbranquiçado e sujo, com o pelo grosso, encaracolado e comprido e o focinho
preto.
E pelas ruas fora vinha o Búzio, com o
sol na cara e as sombras trémulas das folhas dos plátanos nas mãos.
Parava em frente duma porta e entoava a
sua longa melopeia, ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas.
Abria-se a porta e aparecia uma criada
de avental branco, que lhe estendia um pedaço de pão e lhe dizia:
- Vai-te embora, Búzio.
E o Búzio, demoradamente, desprendia o
saco do seu bordão, desatava os cordões, abria o saco e guardava o pão.
Depois de novo seguia.
Parava debaixo de uma varanda,
cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio.
E na varanda debruçava-se alguém
rapidamente, tão rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, e atirava-lhe um
tostão e dizia:
- Vai-te embora, Búzio.
E o Búzio demoradamente – tão
demoradamente que cada um dos seus gestos se via – desprendia o saco do pau,
desatava os cordões, abria o saco, guardava o tostão, e de novo fechava o saco
e o atava e o prendia.
E seguia com o seu cão.
Havia na terra muitos pobres, que
apareciam aos sábados em bandos acastanhados e trágicos, e que pediam esmola
pelas portas e faziam pena. Eram cegos, coxos, surdos e loucos, eram
tuberculosos cuspindo sangue nos seus trapos, eram mães escanzeladas de filhos
quase verdes, eram velhas curvadas e chorosas com as pernas incrivelmente
inchadas, eram rapazes novos mostrando chagas, braços torcidos, mãos cortadas,
lágrimas e desgraça. E sobre o bando pairava um murmúrio incansável de gemidos,
queixas, rezas e lamentações.
Mas o Búzio aparecia sozinho, não se
sabia em que dia da semana, era alto e direito, lembrava o mar e os pinheiros,
não tinha nenhuma ferida e não fazia pena. Ter pena dele seria como ter pena de
um plátano ou de um rio, ou do vento. Nele parecia abolida a barreira que
separa o homem da natureza.
O Búzio não possuía nada, como uma
árvore não possui nada. Vivia com a terra toda, que era ele próprio.
A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e
sua companheira, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida.
Os seus pés descalços pareciam escutar
o chão que pisavam.
E foi assim que o vi aparecer, naquela
tarde em que eu brincava sozinha no jardim.
A nossa casa ficava à beira da praia.
A parte da frente virada para o mar,
tinha um jardim de areia. Na parte de trás, voltada para leste, havia um
pequeno jardim agreste e mal tratado, com o chão coberto de pequenas pedras
soltas, que rolavam sob os passos, um poço, duas árvores e alguns arbustos
desgrenhados pelo vento e queimados pelo sol.
O Búzio, que chegou pelo lado de trás,
abriu a cancela de madeira, que ficou a baloiçar, e atravessou o jardim,
passando sem me ver.
Parou em frente da porta de serviço e,
ao som das suas castanholas de conchas, pôs-se a cantar.
Assim esperou algum tempo. Depois a
porta abriu-se e no seu ângulo escuro apareceu um avental. Visto de fora, o
interior da casa parecia misterioso, sombrio e brilhante. E a criada estendeu
um pão e disse:
- Vai-te embora, Búzio.
Depois fechou a porta.
E o Búzio, sem pressa, demoradamente,
como que desenhando na luz cada um dos seus gestos, puxou os cordões, abriu o
saco, tornou a atar o saco, prendeu-o no pau e seguiu com o seu cão.
Depois deu a volta à casa, para sair
pela frente, pelo lado do mar.
Então eu resolvi ir atrás dele.
Ele atravessou o jardim de areia
coberto de chorão e lírios do mar e caminhou pelas dunas. Quando chegou ao
lugar onde principiava a curva da baía, parou. Ali era já um lugar selvagem e
deserto, longe das casas e estradas.
Eu, que o tinha seguido de longe,
aproximei-me, escondida nas ondulações da duna, e ajoelhei-me atrás de um
pequeno monte, entre as ervas altas, transparentes e secas. Não queria que o
Búzio me visse, porque o queria ver sem mim, sozinho.
Era um pouco antes do pôr do sol e de vez
em quando passava uma pequena brisa.
Do alto da duna via-se a tarde toda,
como uma enorme flor transparente, aberta e estendida até aos confins do
horizonte.
A luz recortava uma por uma todas as
covas da areia. O cheiro nu da maresia, perfume limpo do mar sem putrefação e
sem cadáveres penetrava tudo.
E a todo o comprimento da praia, de
norte a sul, a perder de vista, a maré vazia mostrava os seus rochedos escuros
cobertos de búzios e algas verdes, que recortavam as águas. E atrás deles
quebravam incessantemente, brancas e enroladas e desenroladas, três fileiras de
ondas que, constantemente desfeitas, constantemente se reerguiam.
No alto da duna, o Búzio estava com a
tarde. O sol pousava nas suas mãos, o sol pousava na sua cara e nos seus
ombros. Esteve algum tempo calado; depois, devagar, começou a falar. Eu entendi
que ele falava com o mar, pois o olhava de frente e estendia para ele as suas
mãos abertas, com as palmas em concha viradas para cima. Era um longo discurso
claro, irracional e nebuloso que parecia, como a luz, recortar e desenhar todas
as coisas.
Não posso repetir as suas palavras: não
as decorei e isto passou-se há muitos anos. E também não entendi inteiramente o
que ele dizia. E algumas palavras mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhas
arrancava da boca.
Mas lembro-me de que eram palavras
moduladas como um canto, palavras quase visíveis, que ocupavam os espaços do ar
com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas
coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as escamas de um
peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os
restos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava:
vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas.
Andresen, Sophia de Mello Breyner, in Contos Exemplares. Porto: Porto Editora,
2013.
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