domingo, 10 de novembro de 2019

Leituras de porta em porta - "Homero" de Sophia de Mello Breyner Andresen


Para assinalar o centenário do nascimento da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, a Biblioteca Escolar dinamizou mais umas "Leituras de porta em porta" desta vez com "Homero", um dos textos do livro "Contos Exemplares", uma coletânea publicada pela 1.ª vez em 1962. Este belíssimo texto faz uma comparação entre Homero e o Homem, figura central do texto. Ambos cantam os seus poemas.
Aqui fica o texto para que possa usufruir da beleza e da sonoridade das palavras criteriosamente escolhidas por Sophia.




Homero

Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.
         O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco. Os seus olhos, como o próprio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes mesmo os vi roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas.
         Eram daquelas conchas brancas e grossas com círculos acastanhados, semi-redondas e semitriangulares, que têm no vértice da parte triangular um buraco. O Búzio passava um fio através dos buracos, atando assim as conchas uma à outra, de maneira a formar com elas umas castanholas. E era com essas castanholas que ele marcava o ritmo dos seus longos discursos cadenciados, solitários e misteriosos como poemas.
         O Búzio aparecia ao longe. Via-se crescer dos confins dos areais e das estradas. Primeiro julgava-se que fosse uma árvore ou um penedo distante. Mas quando se aproximava via-se que era o Búzio.
         Na mão esquerda trazia um grande pau que lhe servia de bordão e era seu apoio nas longas caminhadas e sua defesa contra os cães raivosos das quintas. A este pau estava atado um saco de pano, dentro do qual ele guardava os bocados secos do pão que lhe davam e os tostões. O saco era de chita remendada e tão desbotada pelo sol que quase se tornara branca.
         O Búzio chegava de dia, rodeado de luz e de vento, e dois passos à sua frente vinha o seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pelo grosso, encaracolado e comprido e o focinho preto.
         E pelas ruas fora vinha o Búzio, com o sol na cara e as sombras trémulas das folhas dos plátanos nas mãos.
         Parava em frente duma porta e entoava a sua longa melopeia, ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas.
         Abria-se a porta e aparecia uma criada de avental branco, que lhe estendia um pedaço de pão e lhe dizia:
         - Vai-te embora, Búzio.
         E o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões, abria o saco e guardava o pão.
         Depois de novo seguia.
         Parava debaixo de uma varanda, cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio.
         E na varanda debruçava-se alguém rapidamente, tão rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, e atirava-lhe um tostão e dizia:
         - Vai-te embora, Búzio.
         E o Búzio demoradamente – tão demoradamente que cada um dos seus gestos se via – desprendia o saco do pau, desatava os cordões, abria o saco, guardava o tostão, e de novo fechava o saco e o atava e o prendia.
         E seguia com o seu cão.
         Havia na terra muitos pobres, que apareciam aos sábados em bandos acastanhados e trágicos, e que pediam esmola pelas portas e faziam pena. Eram cegos, coxos, surdos e loucos, eram tuberculosos cuspindo sangue nos seus trapos, eram mães escanzeladas de filhos quase verdes, eram velhas curvadas e chorosas com as pernas incrivelmente inchadas, eram rapazes novos mostrando chagas, braços torcidos, mãos cortadas, lágrimas e desgraça. E sobre o bando pairava um murmúrio incansável de gemidos, queixas, rezas e lamentações.
         Mas o Búzio aparecia sozinho, não se sabia em que dia da semana, era alto e direito, lembrava o mar e os pinheiros, não tinha nenhuma ferida e não fazia pena. Ter pena dele seria como ter pena de um plátano ou de um rio, ou do vento. Nele parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza.
         O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda, que era ele próprio.
          A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companheira, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida.
         Os seus pés descalços pareciam escutar o chão que pisavam.
         E foi assim que o vi aparecer, naquela tarde em que eu brincava sozinha no jardim.
         A nossa casa ficava à beira da praia.
         A parte da frente virada para o mar, tinha um jardim de areia. Na parte de trás, voltada para leste, havia um pequeno jardim agreste e mal tratado, com o chão coberto de pequenas pedras soltas, que rolavam sob os passos, um poço, duas árvores e alguns arbustos desgrenhados pelo vento e queimados pelo sol.
         O Búzio, que chegou pelo lado de trás, abriu a cancela de madeira, que ficou a baloiçar, e atravessou o jardim, passando sem me ver.
         Parou em frente da porta de serviço e, ao som das suas castanholas de conchas, pôs-se a cantar.
         Assim esperou algum tempo. Depois a porta abriu-se e no seu ângulo escuro apareceu um avental. Visto de fora, o interior da casa parecia misterioso, sombrio e brilhante. E a criada estendeu um pão e disse:
         - Vai-te embora, Búzio.
         Depois fechou a porta.
         E o Búzio, sem pressa, demoradamente, como que desenhando na luz cada um dos seus gestos, puxou os cordões, abriu o saco, tornou a atar o saco, prendeu-o no pau e seguiu com o seu cão.
         Depois deu a volta à casa, para sair pela frente, pelo lado do mar.
         Então eu resolvi ir atrás dele.
         Ele atravessou o jardim de areia coberto de chorão e lírios do mar e caminhou pelas dunas. Quando chegou ao lugar onde principiava a curva da baía, parou. Ali era já um lugar selvagem e deserto, longe das casas e estradas.
         Eu, que o tinha seguido de longe, aproximei-me, escondida nas ondulações da duna, e ajoelhei-me atrás de um pequeno monte, entre as ervas altas, transparentes e secas. Não queria que o Búzio me visse, porque o queria ver sem mim, sozinho.
         Era um pouco antes do pôr do sol e de vez em quando passava uma pequena brisa.
         Do alto da duna via-se a tarde toda, como uma enorme flor transparente, aberta e estendida até aos confins do horizonte.
         A luz recortava uma por uma todas as covas da areia. O cheiro nu da maresia, perfume limpo do mar sem putrefação e sem cadáveres penetrava tudo.
         E a todo o comprimento da praia, de norte a sul, a perder de vista, a maré vazia mostrava os seus rochedos escuros cobertos de búzios e algas verdes, que recortavam as águas. E atrás deles quebravam incessantemente, brancas e enroladas e desenroladas, três fileiras de ondas que, constantemente desfeitas, constantemente se reerguiam.
         No alto da duna, o Búzio estava com a tarde. O sol pousava nas suas mãos, o sol pousava na sua cara e nos seus ombros. Esteve algum tempo calado; depois, devagar, começou a falar. Eu entendi que ele falava com o mar, pois o olhava de frente e estendia para ele as suas mãos abertas, com as palmas em concha viradas para cima. Era um longo discurso claro, irracional e nebuloso que parecia, como a luz, recortar e desenhar todas as coisas.
         Não posso repetir as suas palavras: não as decorei e isto passou-se há muitos anos. E também não entendi inteiramente o que ele dizia. E algumas palavras mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhas arrancava da boca.
         Mas lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis, que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os restos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas.



Andresen, Sophia de Mello Breyner, in Contos Exemplares. Porto: Porto Editora, 2013.
 

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