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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

"Leituras de porta em porta" assinala Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto




Em circunstâncias normais, a Biblioteca Escolar estaria, hoje, a dinamizar mais um “Leituras de Porta em Porta”. Os alunos monitores estariam, uma vez mais, envolvidos nesta atividade e circulariam pela escola oferecendo um texto a todos os elementos da comunidade escolar. A sua participação nesta atividade evidenciaria, uma vez mais, toda a sua motivação e todo o seu empenho. Infelizmente, uma terrível pandemia tem vindo a impor-se no nosso quotidiano, obrigando-nos a mais um confinamento e impedindo esse contacto presencial tão importante para todos nós. 
Mas, nós não desistimos! Se não é possível entregar os textos em mão, fazemo-lo por via digital. E assim, partilhamos com todos vós mais um texto que, desta vez, pretende também homenagear aqueles que sacrificaram a sua vida em prole dos livros e da cultura. Esperemos que gostem!

Leituras de porta em porta 

NOTA DO AUTOR

“A maioria de nós entende o Holocausto como o maior genocídio da história. Vimos muitas imagens de campos de concentração e de incontáveis cadáveres. Mas poucos encaram o Holocausto como um ato de pilhagem e destruição cultural. Os nazis procuraram não só assassinar os judeus, mas também eliminar a sua cultura. Mandaram milhões de livros, manuscritos e obras de arte para os incineradores e depósitos de lixo. E transportaram centenas de milhares de tesouros culturais para bibliotecas e institutos especializados na Alemanha, a fim de estudar a raça que pretendiam exterminar.

Este livro conta a história de um grupo de judeus residentes num gueto que resistiu, que não aceitou que a sua cultura fosse esmagada e incinerada. Narra a perigosa operação levada a cabo por poetas que se transformaram em guerrilheiros e por eruditos que se tornaram contrabandistas em Vilna, a Jerusalém da Lituânia. (…)

Os alemães usaram quarenta residentes do gueto como trabalhadores escravos para selecionar, empacotar e transportar o material. Num desesperador projeto de dezoito meses, os membros do grupo de trabalho escravo, apelidados de «brigada do papel», enrolaram livros em volta do torso e conseguiram fazê-los passar escondidos pelos guardas alemães. Quando eram apanhados, enfrentavam a morte às mãos do esquadrão de fuzilamento em Ponar, o local de assassínio em massa nos arredores de Vilna.

Depois de Vilna ter sido libertada dos alemães, os membros sobreviventes da «brigada do papel» desenterraram os tesouros culturais ocultos em bunkers e esconderijos. Mas logo chegaram a uma dura constatação: as autoridades soviéticas que assumiram o controlo de Vilna eram tão hostis à cultura judaica como os nazis. Tiveram então de resgatar de novo os tesouros e tirá-los da União Soviética. Mas contrabandear livros e documentos pela fronteira soviético-polaca era tão arriscado como a operação no gueto.

Este livro conta a história de homens e mulheres que mostraram uma devoção inabalável à literatura e à arte, revelando-se dispostos a arriscar a própria vida por elas.”

 

Vilna, Polónia sob ocupação nazi. Julho de 1943 

“O poeta Shmerke Kaczerginski (pronuncia-se Catcherguinsqui) sai do trabalho e volta ao gueto. Trabalhador forçado, a sua brigada seleciona livros, manuscritos e obras de arte. Alguns itens são despachados para a Alemanha. O resto acaba incinerado ou em fábricas de papel. Ele trabalha num equivalente a Auschwitz para a cultura judaica, responsável por selecionar os livros que serão deportados – e os que serão destruídos.

Em comparação com as tarefas que outros trabalhadores forçados fazem na Europa ocupada pelos nazis, Shmerke não está a cavar fortificações para deter o Exército Vermelho, nem a detonar minas terrestres com o próprio corpo, nem a arrastar cadáveres das câmaras de gás para os fornos crematórios. Mesmo assim, foi um dia difícil, labutando no saguão cinzento da Biblioteca da Universidade de Vilna, cheio de livros até ao teto. Naquela manhã, o bruto chefe alemão da brigada, surpreendera Shmerke e alguns outros trabalhadores a ler um poema de um dos livros. Sporket, comerciante de gado por profissão, explodiu em gritos furiosos. As veias do seu pescoço saltavam. Brandiu o punho para os trabalhadores e atirou o livro para o outro lado da sala.

«Seus ladrões trapaceiros, é a isso que chamam trabalhar? Isto aqui não é uma sala de estar!» Advertiu todos de que, se aquilo se repetisse, haveria sérias consequências. A porta bateu atrás dele quando saiu.

Os trabalhadores labutaram nervosos a tarde inteira. O comerciante de gado tratava-os a todos, trabalhadores e livros, como animais de carga – iria explorá-los até à hora de os levar para o matadouro. Se Sporket reportasse o caso à Gestapo, estariam todos mortos.

A colega de trabalho e amante de Shmerke, Rachela Krinsky, uma professora do ensino secundário alta, com profundos olhos castanhos, foi ter com ele. «Ainda vais carregar coisas hoje?»

Shmerke respondeu com o seu característico entusiasmo contagioso. «Claro. Esse louco pode decidir levar tudo embora de repente. Ou mandar para o lixo como papel velho. Esses tesouros são o futuro. Talvez não para nós, mas para quem sobreviver.»

Shmerke colocou uma velha capa da Tora bordada em volta do torso. Assim que acabou de a ajeitar, enfiou quatro livrinhos dentro da nova cinta – velhas raridades publicadas em Veneza, Tessalonica, Amesterdão e Cracóvia. Enfaixou-se com outra pequena capa da Tora como se fosse uma fralda, afivelou o cinto e vestiu a camisa e o casaco. Estava pronto para sair do trabalho e enfrentar a inspeção no portão do gueto.

Já tinha feito aquilo muitas vezes, sempre com uma mistura de determinação, excitação e medo. Sabia quais eram os riscos. Se fosse apanhado, provavelmente enfrentaria uma execução sumária – como ocorrera com uma sua amiga, a cantora Liuba Levitsky, apanhada a transportar um saco de feijão. No mínimo, um SS aplicar-lhe-ia 25 golpes de cassetete ou chicotadas. Enquanto enfiava a camisa para dentro das calças, Shmerke não deixou de perceber a ironia. Afinal, ele, um membro do partido comunista e ateu convicto havia muito tempo, não ia à sinagoga desde criança, estava prestes a arriscar a vida por causa daqueles artefactos, a maioria deles religiosos. Podia sentir o toque de gerações passadas na própria pele.

A fila de trabalhadores que voltavam para o gueto estava muito maior que o costume, dando voltas por dois quarteirões da cidade até chegar ao portão. Da frente da fila veio a informação de que o SS Oberscharführer Bruno Kittel estava a inspecionar pessoalmente toda a gente no portão.

Kittel – jovem, alto, de tez morena e bonito – era um músico competente e um assassino frio, nato. Às vezes entrava no gueto para matar residentes por pura diversão. Parava alguém na rua, oferecia um cigarro à pessoa e depois perguntava: «Quer fogo?» Quando a pessoa assentia, tirava a pistola e dava-lhe um tiro na cabeça.

Quando Kittel estava presente, os guardas lituanos e a polícia judaica do gueto eram mais rigorosos. A um quarteirão de distância, dava para ouvir os gritos de residentes a ser espancados por estarem a levar comida escondida. Os trabalhadores em volta de Shmerke vasculharam dentro da roupa. Batatas, pão, legumes e pedaços de madeira para lenha rolaram pela calçada. Sussurraram advertências a Shmerke; afinal, o seu corpo acolchoado chamava a atenção. Naquela paisagem povoada por corpos famintos e escravizados, o seu torso inexplicavelmente robusto destacava-se à medida que se aproximava do ponto de inspeção.

 «Deita isso fora, deita já!»

Mas Shmerke não o fez. Sabia que seria inútil. Se deixasse os livros hebraicos e as capas da Tora abandonados no chão, os alemães iriam associá-los à sua equipa. Ao contrário das batatas, os livros tinham ex-líbris, rótulos que indicavam a sua origem e propriedade. Kittel poderia decidir executar a brigada de trabalho inteira – incluindo Rachela e o melhor amigo de Shmerke, o também poeta Abraham Sutskever. Portanto, Shmerke resolveu arriscar e preparou-se para o que desse e viesse.

Na fila, todos os outros reviraram de novo os bolsos para ver se havia moedas ou papéis que pudessem despertar a ira de Kittel. Shmerke começou a tremer. À medida que crescia, a fila passou a bloquear o trânsito na rua Zawalna, uma das principais vias de comércio de Vilna. Os elétricos buzinavam. Peões não judeus juntavam-se na rua para assistir ao espetáculo e alguns aproveitavam para recolher os itens descartados no passeio.

De repente, circularam vozes pela multidão.

«Ele entrou no gueto!»

 «Vamos. Rápido!»

Kittel, provavelmente cansado de supervisionar as repetitivas revistas corporais, decidira dar uma volta pelo seu feudo. A fila então avançou rapidamente. Os guardas, surpreendidos e aliviados pela partida de Kittel, viraram-se para ver para onde ele fora e não se incomodaram mais em fazer qualquer esforço para deter a multidão apressada. Ao passar pelo portão, com os livros firmemente atados ao corpo, Shmerke ouviu vozes enciumadas dirigidas a ele.

«Alguns têm mesmo sorte!»

«E as minhas batatas ficaram lá na rua!»

Não sabiam que não era comida o que ele transportava.

Com as botas a ressoar nos paralelepípedos da Rua Rudnicka, a principal do gueto, Shmerke começou a cantar uma canção que compusera para o clube dos jovens:

 

                   Quem quiser sentir-se jovem venha cá,

                   Pois os anos têm aqui pouca importância.

                   Os velhos também podem ser crianças,

                   Livre e nova é a primavera que virá.

 

Num bunker secreto nas profundezas sob o gueto – uma caverna com chão de pedra, escavada no solo húmido -, caixas de lata transbordavam de livros, manuscritos, documentos, lembranças relacionadas com peças de teatro e artefactos religiosos. Mais tarde naquela noite, Shmerke acrescentou os seus tesouros àquele repositório perigoso. Antes de vedar de novo a passagem secreta para aquela sala dos tesouros, despediu-se das capas da Tora e das velhas raridades com uma carícia afetuosa, como se fossem seus filhos.

E Shmerke, sempre um poeta, pensou para consigo: «O nosso presente é escuro como este bunker, mas os tesouros culturais brilham com a promessa de um futuro luminoso.»


Fishman, D. (2019). Os Homens Que Salvavam Livros. Barcarena: Editorial Presença.


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