Leituras de
porta em porta
NOTA DO AUTOR
“A
maioria de nós entende o Holocausto como o maior genocídio da história. Vimos
muitas imagens de campos de concentração e de incontáveis cadáveres. Mas poucos
encaram o Holocausto como um ato de pilhagem e destruição cultural. Os nazis
procuraram não só assassinar os judeus, mas também eliminar a sua cultura.
Mandaram milhões de livros, manuscritos e obras de arte para os incineradores e
depósitos de lixo. E transportaram centenas de milhares de tesouros culturais
para bibliotecas e institutos especializados na Alemanha, a fim de estudar a
raça que pretendiam exterminar.
Este livro conta a história de um grupo
de judeus residentes num gueto que resistiu, que não aceitou que a sua cultura
fosse esmagada e incinerada. Narra a perigosa operação levada a cabo por poetas
que se transformaram em guerrilheiros e por eruditos que se tornaram contrabandistas
em Vilna, a Jerusalém da Lituânia. (…)
Os alemães usaram quarenta residentes
do gueto como trabalhadores escravos para selecionar, empacotar e transportar o
material. Num desesperador projeto de dezoito meses, os membros do grupo de
trabalho escravo, apelidados de «brigada do papel», enrolaram livros em volta
do torso e conseguiram fazê-los passar escondidos pelos guardas alemães. Quando
eram apanhados, enfrentavam a morte às mãos do esquadrão de fuzilamento em
Ponar, o local de assassínio em massa nos arredores de Vilna.
Depois de Vilna ter sido libertada dos
alemães, os membros sobreviventes da «brigada do papel» desenterraram os
tesouros culturais ocultos em bunkers e
esconderijos. Mas logo chegaram a uma dura constatação: as autoridades
soviéticas que assumiram o controlo de Vilna eram tão hostis à cultura judaica
como os nazis. Tiveram então de resgatar de novo os tesouros e tirá-los da
União Soviética. Mas contrabandear livros e documentos pela fronteira
soviético-polaca era tão arriscado como a operação no gueto.
Este livro conta a história de homens e
mulheres que mostraram uma devoção inabalável à literatura e à arte,
revelando-se dispostos a arriscar a própria vida por elas.”
Vilna, Polónia
sob ocupação nazi. Julho de 1943
“O
poeta Shmerke Kaczerginski (pronuncia-se Catcherguinsqui) sai do trabalho e
volta ao gueto. Trabalhador forçado, a sua brigada seleciona livros,
manuscritos e obras de arte. Alguns itens são despachados para a Alemanha. O
resto acaba incinerado ou em fábricas de papel. Ele trabalha num equivalente a
Auschwitz para a cultura judaica, responsável por selecionar os livros que
serão deportados – e os que serão destruídos.
Em comparação com as tarefas que outros
trabalhadores forçados fazem na Europa ocupada pelos nazis, Shmerke não está a
cavar fortificações para deter o Exército Vermelho, nem a detonar minas
terrestres com o próprio corpo, nem a arrastar cadáveres das câmaras de gás
para os fornos crematórios. Mesmo assim, foi um dia difícil, labutando no
saguão cinzento da Biblioteca da Universidade de Vilna, cheio de livros até ao
teto. Naquela manhã, o bruto chefe alemão da brigada, surpreendera Shmerke e
alguns outros trabalhadores a ler um poema de um dos livros. Sporket,
comerciante de gado por profissão, explodiu em gritos furiosos. As veias do seu
pescoço saltavam. Brandiu o punho para os trabalhadores e atirou o livro para o
outro lado da sala.
«Seus ladrões trapaceiros, é a isso que
chamam trabalhar? Isto aqui não é uma sala de estar!» Advertiu todos de que, se
aquilo se repetisse, haveria sérias consequências. A porta bateu atrás dele
quando saiu.
Os trabalhadores labutaram nervosos a
tarde inteira. O comerciante de gado tratava-os a todos, trabalhadores e
livros, como animais de carga – iria explorá-los até à hora de os levar para o
matadouro. Se Sporket reportasse o caso à Gestapo, estariam todos mortos.
A colega de trabalho e amante de
Shmerke, Rachela Krinsky, uma professora do ensino secundário alta, com
profundos olhos castanhos, foi ter com ele. «Ainda vais carregar coisas hoje?»
Shmerke respondeu com o seu
característico entusiasmo contagioso. «Claro. Esse louco pode decidir levar
tudo embora de repente. Ou mandar para o lixo como papel velho. Esses tesouros
são o futuro. Talvez não para nós, mas para quem sobreviver.»
Shmerke colocou uma velha capa da Tora
bordada em volta do torso. Assim que acabou de a ajeitar, enfiou quatro
livrinhos dentro da nova cinta – velhas raridades publicadas em Veneza,
Tessalonica, Amesterdão e Cracóvia. Enfaixou-se com outra pequena capa da Tora
como se fosse uma fralda, afivelou o cinto e vestiu a camisa e o casaco. Estava
pronto para sair do trabalho e enfrentar a inspeção no portão do gueto.
Já tinha feito aquilo muitas vezes,
sempre com uma mistura de determinação, excitação e medo. Sabia quais eram os
riscos. Se fosse apanhado, provavelmente enfrentaria uma execução sumária –
como ocorrera com uma sua amiga, a cantora Liuba Levitsky, apanhada a transportar
um saco de feijão. No mínimo, um SS aplicar-lhe-ia 25 golpes de cassetete ou
chicotadas. Enquanto enfiava a camisa para dentro das calças, Shmerke não
deixou de perceber a ironia. Afinal, ele, um membro do partido comunista e ateu
convicto havia muito tempo, não ia à sinagoga desde criança, estava prestes a
arriscar a vida por causa daqueles artefactos, a maioria deles religiosos.
Podia sentir o toque de gerações passadas na própria pele.
A fila de trabalhadores que voltavam
para o gueto estava muito maior que o costume, dando voltas por dois
quarteirões da cidade até chegar ao portão. Da frente da fila veio a informação
de que o SS Oberscharführer Bruno
Kittel estava a inspecionar pessoalmente toda a gente no portão.
Kittel – jovem, alto, de tez morena e
bonito – era um músico competente e um assassino frio, nato. Às vezes entrava
no gueto para matar residentes por pura diversão. Parava alguém na rua,
oferecia um cigarro à pessoa e depois perguntava: «Quer fogo?» Quando a pessoa
assentia, tirava a pistola e dava-lhe um tiro na cabeça.
Quando Kittel estava presente, os guardas lituanos e a polícia judaica do gueto eram mais rigorosos. A um quarteirão de distância, dava para ouvir os gritos de residentes a ser espancados por estarem a levar comida escondida. Os trabalhadores em volta de Shmerke vasculharam dentro da roupa. Batatas, pão, legumes e pedaços de madeira para lenha rolaram pela calçada. Sussurraram advertências a Shmerke; afinal, o seu corpo acolchoado chamava a atenção. Naquela paisagem povoada por corpos famintos e escravizados, o seu torso inexplicavelmente robusto destacava-se à medida que se aproximava do ponto de inspeção.
«Deita isso fora, deita já!»
Mas Shmerke não o fez. Sabia que seria
inútil. Se deixasse os livros hebraicos e as capas da Tora abandonados no chão,
os alemães iriam associá-los à sua equipa. Ao contrário das batatas, os livros
tinham ex-líbris, rótulos que indicavam a sua origem e propriedade. Kittel
poderia decidir executar a brigada de trabalho inteira – incluindo Rachela e o
melhor amigo de Shmerke, o também poeta Abraham Sutskever. Portanto, Shmerke
resolveu arriscar e preparou-se para o que desse e viesse.
Na fila, todos os outros reviraram de
novo os bolsos para ver se havia moedas ou papéis que pudessem despertar a ira
de Kittel. Shmerke começou a tremer. À medida que crescia, a fila passou a
bloquear o trânsito na rua Zawalna, uma das principais vias de comércio de
Vilna. Os elétricos buzinavam. Peões não judeus juntavam-se na rua para assistir
ao espetáculo e alguns aproveitavam para recolher os itens descartados no
passeio.
De repente, circularam vozes pela
multidão.
«Ele entrou no gueto!»
«Vamos. Rápido!»
Kittel, provavelmente cansado de
supervisionar as repetitivas revistas corporais, decidira dar uma volta pelo
seu feudo. A fila então avançou rapidamente. Os guardas, surpreendidos e
aliviados pela partida de Kittel, viraram-se para ver para onde ele fora e não
se incomodaram mais em fazer qualquer esforço para deter a multidão apressada.
Ao passar pelo portão, com os livros firmemente atados ao corpo, Shmerke ouviu
vozes enciumadas dirigidas a ele.
«Alguns têm mesmo sorte!»
«E as minhas batatas ficaram lá na
rua!»
Não sabiam que não era comida o que ele
transportava.
Com as botas a ressoar nos
paralelepípedos da Rua Rudnicka, a principal do gueto, Shmerke começou a cantar
uma canção que compusera para o clube dos jovens:
Quem quiser sentir-se jovem
venha cá,
Pois os anos têm aqui pouca
importância.
Os velhos também podem ser
crianças,
Livre e nova é a primavera
que virá.
Num bunker
secreto nas profundezas sob o gueto – uma caverna com chão de pedra, escavada
no solo húmido -, caixas de lata transbordavam de livros, manuscritos,
documentos, lembranças relacionadas com peças de teatro e artefactos
religiosos. Mais tarde naquela noite, Shmerke acrescentou os seus tesouros
àquele repositório perigoso. Antes de vedar de novo a passagem secreta para
aquela sala dos tesouros, despediu-se das capas da Tora e das velhas raridades com
uma carícia afetuosa, como se fossem seus filhos.
E Shmerke, sempre um poeta, pensou para consigo: «O nosso presente é escuro como este bunker, mas os tesouros culturais brilham com a promessa de um futuro luminoso.»
Fishman, D. (2019). Os Homens Que Salvavam Livros. Barcarena: Editorial Presença.
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