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quinta-feira, 18 de março de 2021

"Leituras de porta em porta", em versão digital, para assinalar o Dia do Pai

 

“Os Livros que devoraram o meu pai”

 Capítulo I

Livros e Mais Livros!

 

_ Vivaldo! Vivaldo! Vivaldo! Vivaldo! – gritava o chefe da repartição, mas ele ouvia aquela voz lá muito ao fundo, a desaparecer numa esquina.

Foi assim que a minha avó me começou a contar a história de Vivaldo Bonfim, o meu pai. Ele trabalhava no 7.º Bairro Fiscal e achava-se num mundo entediante, chato, plano, aborrecido, cheio de papéis, papeladas e outras burocracias que se fazem com a madeira das árvores. Era um mundo desprovido de literatura. A minha mãe estava grávida de mim, eu nadava no seu útero, dava voltas como a roupa na máquina de lavar, nessa altura fatídica. O meu pai só pensava em livros (livros e mais livros!), mas a vida não era da mesma opinião, a vida dele pensava noutras coisas, andava distraída, e ele teve de se empregar. A vida, muitas vezes, não tem consideração nenhuma por aquilo de que gostamos. Contudo, o meu pai levava livros (livros e mais livros!) para a repartição de finanças e lia às escondidas sempre que podia. Não é uma atitude que se aconselhe, mas era mais forte do que ele. O meu pai amava a literatura acima de tudo. Punha sempre um livro em baixo de modelos B, impressos de alteração de atividade e outros papéis de nomes ilustres, e lia discretamente, fingindo trabalhar. Não era uma atitude muito bonita, mas o meu pai só pensava nos livros. Foi isto que a minha avó me contou com os seus pensamentos cheios de rugas na testa.

Nunca conheci o meu pai. Quando nasci já ele não andava aqui neste mundo. 

 

Capítulo 2

Escadas e Escadarias 

O que significa um eufemismo? É quando queremos dizer coisas que podem magoar e, para o evitar, usamos umas palavras menos bicudas. Por exemplo, eu poderia dizer que o meu pai já não anda neste mundo em vez de dizer que morreu de um enfarte. Parece um eufemismo: «não anda neste mundo» em vez de «morreu», mas não é. É a verdade objetiva como haverão de perceber. Sem qualquer figura de estilo.

Uma tarde, uma tarde como tantas outras, o meu pai estava a ler um livro que mantinha debaixo dum impresso do IRS para que o chefe não reparasse que ele não estava a trabalhar. E foi nessa tarde que ele, de tão embrenhado, tão concentrado na leitura, entrou livro adentro. Perdeu-se na leitura. Quando o chefe da repartição chegou à secretária do meu pai, ele já lá não estava. Havia, em cima da mesa, uns impressos do IRS e um exemplar de A Ilha do Dr. Moreau aberto nas últimas páginas. O Júlio (era assim que se chamava o chefe do meu pai) chamou por ele: Vivaldo! Vivaldo!, mas o meu pai nada. Estava enfiado no meio da literatura, estava a viver aquele romance.

A minha avó diz que isto pode acontecer quando verdadeiramente nos concentramos no que lemos. Podemos entrar livro adentro como aconteceu com o meu pai. É um processo tão simples quanto debruçarmo-nos numa varanda, só que muito menos perigoso, apesar de ser uma queda de vários andares. Sim, porque a leitura das coisas pode ter muitos andares. Soube pela minha avó que um tal Orígenes, por exemplo, dizia haver uma primeira leitura, superficial, e outras mais profundas, alegóricas. Não me vou alongar por este tema, basta saber que um bom livro deve ter mais do que uma pele, deve ser um prédio de vários andares. O rés do chão não serve à literatura. Está muito bem para a construção civil, é cómodo para quem não gosta de subir escadas, útil para quem não pode subir escadas, mas para a literatura há que haver andares empilhados uns em cima dos outros. Escadas e escadarias, letra abaixo, letras acima.

 

Capítulo 3

Por Vezes a Voz Dela Fica Um Pouco Amarrotada 

Fiz doze anos ontem e é por isso que toda esta aventura começou. A festa foi normal, como tantas outras que já tive. Veio a família toda: primos, tios, tias e alguns amigos e vizinhos. Houve um bolo e cantou-se os parabéns. Tudo normal. As velas arderam a sua cera para cima do bolo, as pessoas desafinaram a música dos parabéns na minha direção, bateram palmas, riram de contentes. Eu projetei um sopro com doze anos para cima das velas e elas apagaram-se com o peso do ar. O bolo foi fatiado sem misericórdia. E quando finalmente entardeceu – e toda a gente se foi embora -, a minha avó disse-me, com os seus olhos esquecidos, para passar por casa dela no dia seguinte. Nesse dia tive presentes de toda a gente, menos da minha avó. Estranhei porque isso nunca aconteceu. Os avós, mesmo quando a memória lhes falta, nunca se esquecem dos presentes.

E no dia seguinte lá fui, depois das aulas, ter com a minha avó. Ela disse-me para me sentar, fez um gesto com a mão engelhada em direção ao sofá das riscas. Sento-me sempre nessas riscas, sempre que a visito. Ela também se sentou com a sua lentidão e um vestido florido. Passou as mãos pelo cabelo, ajeitou a voz e os óculos. Por vezes a voz dela fica um pouco amarrotada, quando se senta, quando acaba de fazer um esforço. Explicou-me - enquanto eu mastigava um bolo – que eu já era um homenzinho e que começava a ter responsabilidades. Estava na altura de saber a verdade. As palavras dela vinham cheias de cabelos brancos, podia sentir que havia nelas muita vida vivida. Era uma conversa séria, por isso prestei muita atenção. Ela falou-me do meu pai e contou-me como ele, naquela tarde na repartição de finanças, entrou dentro dum livro e nunca mais soubemos dele (eu pensava, até então, que toda a tragédia de me ter tornado órfão de pai se devia a uma doença de coração. «Teve um enfarte», foi o que sempre ouvi dizer sobre o meu pai).

Ao que parece, o meu pai tinha previsto uma coisa destas, já imaginava que pudesse cair naquele abismo de letras, e fechou os seus livros no sótão da casa da minha avó. Durante doze anos, a biblioteca do meu pai esteve à minha espera com aqueles livros todos sentados nas prateleiras. Entregou a chave do seu reduto literário à minha avó: «Dá-lha quando achares que ele pode ler o meu sótão de livros», disse o meu pai umas semanas antes de partir para esse mundo de letras.

A minha avó entregou-me a chave, com toda a solenidade. Naquele sótão encontraria todos os livros do meu pai, inclusivamente o livro A Ilha do Dr. Moreau, que foi o livro que ele usou para entrar no mundo da literatura. Muito nervoso, recebi aquele presente. Ia finalmente conhecer o meu pai, iria atrás dele, iria percorrer todas as palavras que ele percorreu, haveria de encontrá-lo por trás de uma frase, entre personagens dum romance qualquer. Ou assim acreditava.”

 

Cruz, A. (2014). Os Livros Que Devoraram O Meu Pai – A Estranha E Mágica História De Vivaldo Bonfim. Alfragide: Editorial Caminho, SA.



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