Fez
ontem, dia 27 de janeiro, 77 anos que as tropas soviéticas chegaram ao Campo de
Concentração de Auschwitz. Depararam-se com um cenário Dantesco – centenas de
cadáveres espalhados pelo Campo, um odor nauseabundo e centenas de seres
humanos, ainda vivos, num estado de estado de debilidade física indescritível.
Algumas
semanas antes, os Comandantes, deste e de outros Campos de Concentração, tinham
recebido ordens para partir com a esmagadora maioria dos prisioneiros, não sem
antes destruir algumas das infraestruturas e alguns documentos mais
comprometedores. O avanço dos Aliados e das tropas Russas em territórios
ocupados e na própria Alemanha motivaram esta transferência de prisioneiros
para locais na Alemanha ou outros com maior resistência nazi. Os prisioneiros
foram obrigados a deslocarem-se, ao longo de centenas de quilómetros, a pé, sem
comida, sob o frio intenso do inverno, e sob ameaça permanente de serem mortos
caso caíssem, por já nem sequer aguentarem o peso dos seus próprios corpos. Esta
caminhada ficou conhecida como A Marcha da Morte.
Em
janeiro de 1945, os judeus foram evacuados de Auschwitz para mais próximo da
Alemanha, em abril, foram os judeus de Buchenwald, e ao longo dos últimos meses
da guerra, milhões de prisioneiros judeus caminharam para a morte. Quando estes
deslocamentos acabaram, mais de 2 milhões de judeus tinham perdido a vida
nestas deslocações.
No
Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, a Biblioteca Escolar
lembrou este trágico evento em mais uma atividade “Leituras de Porta em Porta”
dando a conhecer à comunidade escolar excertos do livro “Se Isto é Uma Mulher”.
Aqui
fica o excerto que selecionámos e que foi distribuído a Professores, Alunos,
Assistentes Operacionais e Administrativos.
A Marcha da Morte
“Grete Buber-Neumann disse que podia
sempre adivinhar-se quais eram as mulheres que chegavam a Ravensbrück de
Auschwitz, porque tinham uma dureza especial – em particular as que
sobreviveram à marcha da morte de janeiro de 1945. As judias entre as
20 000 mulheres deixadas em Auschwitz no final ainda ali estavam porque
tiveram a «sorte» de serem fortes e saudáveis quando chegaram e, por
consequência, foram selecionadas para trabalhar. Allegra Benvenisti tinha
dezoito anos quando chegou a Auschwitz vinda de Salónica, na Grécia, com os
pais, as irmãs, os irmãos e os primos. Na primeira seleção, o oficial da SS
apontou-lhe para que se dirigisse para um lado, enquanto quase todos os outros
membros da sua família foram para o outro lado, para a câmara de gás.
Como Allegra notou, muitas dessas
jovens saudáveis morriam de doenças ao fim de duas ou três semanas. Também ela
adoeceu e quase morreu, mas uma enfermeira ucraniana salvou-a tirando-a às
escondidas do bloco do hospital antes de um camião levar todas as doentes - «mortas
ou vivas». (…)
Ao longo do verão de 1944, Allegra e
outras prisioneiras «trabalhadoras» viram Auschwitz atingir o auge do seu
poder, com o extermínio de 400 000 húngaros em apenas dois meses. Mas
durante o outono o ritmo de comboios que chegavam com vítimas para o extermínio
começou a abrandar, com o avanço dos Soviéticos e o campo de concentração a
preparar-se para a evacuação. Em outubro, os que ainda estavam vivos em
Auschwitz atreviam-se a ter a esperança de sobreviver, especialmente quando, em
2 de novembro, as fornalhas deixaram de deitar fumo. (…)
Perto do final desse ano, os blocos e
as ruas de Auschwitz começaram a ficar menos povoados, com os prisioneiros a
serem transferidos para campos de concentração na Alemanha. (…)
Em janeiro de 1945, com os Russos a
apenas alguns dias de Auschwitz, a SS começou a preparar-se freneticamente para
a evacuação. Não tardou a tornar-se claro que quem estivesse apto a caminhar
seria forçado a marchar, mas quem estivesse demasiado fraco seria assassinado.
Quando se aproximou o momento de partir, os guardas começaram a dizimar os
doentes e os moribundos a tiro. Prepararam-se também para fazer ir pelos ares o
campo de concentração. Lydia Vago, que tinha adoecido, estava na enfermaria e
recordou-se de ouvir uma enfermeira berrar-lhe que saísse imediatamente. Lydia
saiu da Revier e quando se afastava
viu chegar um camião para levar para serem mortos a tiro os doentes que
estivessem demasiado débeis para andarem.
Em 18 de janeiro, o trabalho prosseguia
normalmente, incluindo a construção de um novo bloco. Ao cair da noite, chegou
o aviso de evacuação. Maria Rundo recordava-se de faltar a luz no hospital onde
ela trabalhava e de a seguir as luzes voltarem a acender-se e de um homem da SS
ordenar às enfermeiras que recolhessem todas as fichas das pessoas doentes, que
levou consigo. Na Lagerstrasse, havia
pessoas a berrarem que quem conseguisse andar devia regressar aos seus blocos,
porque ia dar-se início à evacuação. Estava a nevar e quando os prisioneiros
começaram a correr de volta para os seus blocos os que estavam demasiado
doentes para marcharem entraram em pânico. «Não havia dúvida sobre o seu
destino, porque a SS não permitira que os doentes fossem libertados», disse
Lydia Vago.
Alguns não queriam partir, na esperança
de saudarem os seus libertadores soviéticos. Alina Brewda, a médica judia,
escondeu-se com os doentes, mas um oficial da SS encontrou-a e enxotou-a. Alguns
dirigiram-se para os armazéns de vestuário e pegaram no que podiam para se
manterem agasalhados – cobertores, casacos, camisolas. Allegra, a jovem
Salónica, estava no turno da noite na fábrica quando se ouviu a chamada. Não
teve tempo de comer nem de procurar roupas quentes e foi diretamente para a
fila que se formava naquela altura junto aos portões. Lydia Vago teve ainda
tempo de entrar na farmácia da pequena Revier
da fábrica e de meter aspirinas e gaze no seu pequeno saco feito de tecido de
uniforme azul-acinzentado. Ela e a sua irmã Aniko levaram roupas e cobertores
extra atados em fardos às costas, com o fio bem agarrado nas mãos.
Ao fim da tarde do dia da evacuação, os
selecionados para partirem reuniram-se junto aos portões: homens, mulheres,
judeus e não-judeus, Kapos e não-Kapos. Tinham dito às crianças que não
poderiam partir, mas algumas vieram. Imediatamente antes de se abrirem os
portões, os guardas entregaram a cada prisioneiro um pão e disseram-lhes que
formassem uma fila, com as mulheres atrás. (…)
Lydia manteve-se junto de Aniko. Era de
importância vital que não se perdessem uma da outra na multidão, que começava
agora a pôr-se em marcha. Os guardas berravam: «Alles antreten» - Em fila, alinhem-se. Saiam. Os cães ladravam.
Soou um alerta de ataque aéreo e durante uns minutos apagaram-se todas as
luzes, mergulhando o campo de concentração na escuridão. As pessoas pensaram
esconder-se, mas de que valia, se o campo ia pelos ares? Enquanto os
prisioneiros se afastavam, sabiam que o Exército Vermelho estava perto, porque
viam as «velas de Estaline» - os mísseis soviéticos Katyusha – a iluminarem o céu.
A fila avançou lentamente pela estrada
coberta de neve, com os homens à frente, as mulheres atrás e pessoal armado da
SS de todos os lados. A temperatura descia em flecha. Alina Brewda recordava-se
de os guardas lhes ordenarem que corressem, aguilhoando os prisioneiros com as
suas baionetas. Alguns corriam, mas outros tropeçavam. Pouco depois viram os
primeiros homens mortos prostrados na neve, alvejados por terem caído. Não
tardaram a ver também mulheres mortas a tiro. Allegra estava sempre a
escorregar, porque a neve colava-se nos seus socos de madeira. Quando Alina não
conseguia acompanhar o ritmo da marcha, algumas prisioneiras mais fortes
seguravam-na por baixo dos braços e levavam-na, de modo que ela «corria» entre
elas mal tocando no chão. (…)
Nos primeiros dias, os guardas
permitiram-lhes que descansassem algumas vezes e que fizessem as suas
necessidades na berma da estrada. Mas receavam adormecer ali acocoradas, e
morrerem geladas. Já tinham comido o seu pão e tudo aquilo a que tinham
conseguido deitar mão antes de partir do campo de concentração. «Por isso,
comemos neve», disse Maria Rundo. (…)
Soavam repetidamente tiros por trás
delas, quando a SS executava os que se desgarravam do grupo. Os prisioneiros
passavam agora por cima de cadáveres espalhados ao longo da estrada, que eram
mortos a tiro quando escorregavam e caíam. Lydia viu um rapaz de olhos azuis
aos seus pés e passou por cima dele. Uma jovem e a sua mãe levaram em braços
uma irmã mais nova, exausta, até já não terem forças para carregar com ela.
«Por isso sacrificámo-la e ela morreu.» Sabiam que os guardas a tinham matado,
porque ouviram o tiro segundos depois.
Ao fim de três dias, perderam a conta
do tempo. No grupo da fábrica de Lydia e de Aniko, calculava-se que o número de
prisioneiras já baixara de 500 para 300. Por vezes, pareciam estar a avançar
aos tropeções com milhares de pessoas, outras vezes só com um pequeno grupo,
separadas temporariamente da multidão em vagas.(…)
O grupo de Allegra e Berry marchou mais
400 quilómetros para oeste e em seguida para norte, passando por Praga e daí
para a Alemanha, onde os ataques eram de grande intensidade. Passaram uma noite
num campo de cadáveres de pessoas e de cavalos e no dia seguinte os guardas encurralaram-nas
dentro de vagões de um comboio. (…)
Lydia e Aniko iam de pé perto da parte
da frente do vagão, onde o guarda da SS estava sentado num banco com o seu
pastor-alemão aos pés. O cão levantou-se e Lydia rastejou para debaixo dele e
deitou-se para se aquecer. Tinha a certeza de que o guarda mandaria o cão
mordê-la ou que dispararia sobre ela. Mas ele só se queixou: «Assim, o meu cão
não tem espaço», e disse-lhe que se afastasse. «Viajámos assim durante toda a
noite e na tarde seguinte chegámos a Ravensbrück.»
As mulheres de Auschwitz chegaram a
Ravensbrück em diferentes grupos ao longo de vários dias, perto do final de
janeiro de 1945. Walter Schenk, o chefe do crematório, recordou que havia
tantas mortas entre elas que as fornalhas não davam vazão ao número de
cadáveres e, por isso, foi também usado o crematório de Fürstenberg para os
queimar. Continuavam a chegar mais transportes.
«Mulheres mortas de pé, meio geladas,
tombavam dos camiões», disse Lydia sobre as prisioneiras do seu comboio. Havia
um número incontável de mortas, levadas diretamente para serem cremadas. Aos
portões, os guardas fizeram aquilo que, inicialmente, Lydia e Aniko julgaram
ser uma seleção. Em vez disso, «uma mulher pequena e feia à mesa do controlo,
com as faces e os lábios pintados de vermelho, limitou-se a mandá-las entrar».
Lydia disse: «Tentávamos adivinhar se iriam matar-nos na câmara de gás ou a
tiro.» As duas irmãs receavam que a ferida de Aniko estivesse agora tão
infetada que a levassem para a matarem. (…)
Lydia e Aniko foram «metidas à pazada»
na tenda, onde Lydia tentou proteger a mão infetada de Aniko quando a sopa foi
distribuída às vagas de pessoas. Alguém com uma concha deitou sopa para a
tigela que Lydia trazia atada à cintura por um fio e as duas jovens partilharam-na.
(…)
Ao fim de vários dias, quando Lydia e Aniko já julgavam que tinham sido abandonadas para morrer, foram subitamente chamadas para ser feito o seu registo. (…) Mandaram Lydia pôr-se de pé num aparelho para a medir. «Porque é que subitamente eles tinham curiosidade em saber que altura eu tinha?» A seguir as jovens receberam os seus novos números do campo de concentração num pedaço de tecido branco: 99 626 para Lydia e 99 627 para Aniko."
Helm, S. (2015). Se
Isto É Uma Mulher – Dentro de Ravensbrück: o campo de concentração de Hitler
para mulheres. Lisboa: Editorial
Presença.
Alguns dos alunos monitores que participaram neste "Leituras de Porta em Porta"
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