A Biblioteca
Escolar/Centro de Recursos Educativos da Escola Básica e Secundária de Gama
Barros assinalou, uma vez mais, o Dia Internacional da Mulher com a atividade “Leituras
de Porta em Porta”, uma iniciativa na qual participaram algumas das alunas
monitoras da BE/CRE. Este ano, sobretudo tendo em conta que se assinalam os 50
anos do 25 de abril, a opção recaiu sobre uma entrevista dada por Maria Teresa
Horta ao jornal “Público”. Maria Teresa Horta ficou conhecida como uma das mais
ativas feministas portuguesas e integrou com Maria Isabel Barreno e Maria Velho
da Costa o grupo que ficou conhecido como “As Três Marias”.
Maria Teresa Horta é a única sobrevivente deste grupo e assumiu, no passado dia 5 de março, a edição do jornal “Público” quase totalmente dedicada às mulheres.
Aqui fica um excerto
dessa interessante entrevista com Maria Teresa Horta.
“Em
março de 1974, Maria Teresa Horta era uma figura pública fortemente associada
ao combate ao Estado Novo e à luta pelos direitos das mulheres. Jornalista,
escritora, poetisa, ex-membro do grupo Poesia 61, tinha 36 anos, sete livros de
poesia publicados (…) e era uma das três autoras de um livro revolucionário, Novas Cartas Portuguesas, com Maria
Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, onde alertavam para a condição da mulher
em Portugal. Publicado em 1972, causou escândalo nacional e pouco depois seria
traduzido para francês e inglês. Iniciou-se um processo judicial e havia
julgamento marcado para 25 de abril desse ano de 1974, justamente no dia em que
o antigo regime caiu.(…) Aos 86 anos, muitos livros depois, entre poesia,
contos e romance, vários prémios, continua a escrever diariamente no primeiro
papel que encontra por perto e atenta ao que sempre a moveu, a luta, como
refere nesta conversa em sua casa, rodeada por livros e memórias (…).
Quando pensa na palavra “mulher”,
pensa em quê?
Mulher
sou eu. É daquelas palavras que fazem parte de mim. Se no meu pensamento não
está isso de ser mulher, por mais inconscientemente que seja, então estou a
fazer muito mau uso de mim própria. Uma pessoa, quando é mulher, tem de
entender o que isso quer dizer. Depois, é conforme a mulher. Todos os homens
são diferentes uns dos outros e as mulheres também são, e durante muito tempo
isso não aconteceu. Os homens eram diferentes uns dos outros, mas as mulheres
eram todas iguaizinhas.
Foi educada numa família
tradicional, mas com alguma liberdade.
Acho
que não. O meu pai tentou que eu cumprisse as regras que eram impostas às
mulheres. Fiz exatamente o contrário. Lembro-me muito bem de haver uma pessoa
da minha família que ligou ao meu pai a dizer:
“Olha,
ontem vi a Teresa a atravessar uma rua e pôr a mão em cima do braço de um
homem.” Era um amigo que ia ao meu lado e fiz aquela coisa instintiva,
atravessar a rua e pôr a mão no braço da pessoa ao lado. Isto diz bem a posição
da mulher. A certa altura, o pai é informado de que a filha, que tem 21 anos,
atravessa a rua e põe a mão no braço do amigo.
A mulher era alguém sempre sob
vigilância.
Isso
estive, toda a minha vida, pela minha família.
Começa a publicar em 1960, a
falar do corpo da mulher, uma coisa quase interdita.
Era
completamente interdito, o corpo.
De onde veio a vontade de falar
do corpo?
Comecei
a ver que nos livros que eu lia os homens falavam do corpo. Ou seja, os homens
tinham corpo, as mulheres praticamente não tinham.
Falamos dos anos 1930/40.
Naquela
altura já havia mulheres que lutavam pelos seus próprios direitos e os de
outras mulheres. Eram criticadas, vinham para a rua e tinham consciência de que
o que estavam a fazer era muito perigoso. Eu ainda conheci isso. Ser feminista
era uma coisa aviltante, tanto que diziam “você é feminista”, querendo
insultar.
Consegue identificar a génese da
sua escrita?
Eu
lia muito, desde muito pequena. Aprendi a ler sozinha e com a minha avó. A
minha avó era uma feminista.
Havia a influência da sua avó…
Sim.
As mulheres da minha vida eram muito mais ousadas do que os homens. Eu não sei
como seria se não fosse a minha avó. Sentávamo-nos as duas e o meu pai tomava o
pequeno-almoço e lia o jornal. O jornal só vinha para o meu pai, o Diário de Notícias, e nós não podíamos
ter nem uma coisinha para ler. Mas ele era homem, era pai, aquele ser [faz um
gesto de reverência] podia. Ele lia e quando chegava às sufragistas… “e agora
mais uma em Inglaterra, foram para a rua”. E ele: “Estas mulheres são doidas.”
[Um dia] a minha avó [disse]: “Olha Jorge, eu não te admito que à minha frente
tu digas isso destas mulheres.” Depois, levanta-se da mesa, dá a volta para ir
direita à porta e a Teresa levanta-se, dá-lhe a mão e saem as duas. E ali dá-se
a mudança na minha vida. Era inverno e havia uma braseira. E a minha avó
sentou-se com um ar digno e disse:
“Olha
filha, deste o primeiro passo que as mulheres devem dar, o da solidariedade
para com as mulheres.” Nunca mais me esqueci. A falta de solidariedade das
mulheres é uma coisa terrível. É das coisas que mais me impressionam, que mais
me magoam. (…)
Como olha agora para outra
cumplicidade, a que nasceu entre As Três
Marias, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa?
A
Isabel já conhecia a Fátima [refere-se sempre a Maria Velho da Costa como
Fátima, Maria de Fátima Bívar Velho da Costa], porque tinham estado na
faculdade ao mesmo tempo. Já eu era jornalista. E, quando elas publicam juntas
o primeiro livro, telefonei-lhes. Eu fazia o suplemento literário d’ A Capital, queria uma entrevista com
elas. Daí passámos a almoçar juntas uma vez por semana. Iam ter comigo à Capital. Começámos a falar, e se
fizéssemos um livro juntas? Mas o quê?
Uma
vez deram-me uma tareia na rua, não morri por acaso. Era à noite, eu ia ter com
o Luís [Luís de Barros, o marido], que saía d’ A Capital. Quando começo a subir do bairro social do Arco Cego,
onde vivíamos (…) vejo um carro que abre a luz a tenta apanhar-me. Não consegue
porque por detrás estava um candeeiro. Qual não é o meu espanto quando vejo o
carro parar e virem dois homens direitos a mim. Atiraram-me ao chão, bateram
com a minha cabeça no chão, disseram:
“Isto
é para aprenderes a não fazer aquilo que fazes.” (…)
Esse momento acabou por ser
determinante para o livro.
Determinante
para tudo na minha vida. É daí que nasce o livro [Novas Cartas Portuguesas, que seria publicado em 1972]. Passados
dois dias, estava ainda num estado comatoso e elas viram-me. Expliquei o que
fizeram. A Fátima diz: “E se fizéssemos as três um livro sobre isso?” Passado
uma semana, a Isabel, com aquele ar de “não me ralo com nada”, abriu a mala e
tirou o primeiro texto. Foi o único texto que sempre dissemos de quem era. É muito
bonito. Convenceram-me. Era um entusiasmo, divertidíssimo. Todas as semanas nos
encontrávamos uma vez, à noite ou ao fim da tarde, e levávamos os nossos textos
com cópia e distribuíamos pelas três e começávamos a discutir o que tínhamos
feito e trazíamos já os nossos textos sobre os textos umas das outras da semana
anterior. Não escrevíamos ao pé umas das outras. Não era combinado o tema; era
o que quiséssemos.
O livro saiu, seguiram-se tempos
conturbados, julgamentos, um julgamento adiado que calhou no dia 25 de abril de
1974 e nunca ocorreu.
Da
primeira vez em que nos prenderam, puseram-nos numa sala. Estávamos com os
nossos advogados e estavam umas mulheres sentadas à nossa frente. Passado um
pedacinho, uma levanta-se, chega ao pé de mim e diz: “A menina está aqui
porquê?” Eu disse: “Estou aqui, como estão estas meninas aqui ao meu lado. Nós
publicámos um livro.” Ela respondeu: “Eles enganaram-se, esta é a sala das
prostitutas.” Para nos humilharem, tinham-nos metido na sala das prostitutas.
Como se isso fosse uma coisa que nos ofendesse imenso. Éramos todas mulheres.
(…)
Quis ser jornalista numa altura
em que havia muito poucas mulheres na profissão.
Sempre
quis ser jornalista. Achava lindo. O meu pai lia imenso, comprava tudo o que
era jornal. Era aquilo que eu queria. A luta. Eu era pequenina e não tinha bem
a consciência de que isso faz a nossa personalidade, pertencia àquilo que eu
queria que fosse a luta. E eu dizia o que queria. Tenho muita, muita
dificuldade nessa coisa do cuidado. Não sou capaz de ter cuidado. (…)
Chegou a ser chefe na revista
Mulheres.
Sim.
Era chefe de outras mulheres.
Sim,
não havia homens. Todas pagas pelo PCP, a revista era do PCP. Era o PCP que
mandava e que, de vez em quando, me chamava e dizia: “Isto não pode ser assim.”
Até que houve um dia que chegou lá o camarada não sei quantos, que era o que
mandava, que me disse que eu estava proibida de fazer uma série de coisas.
Proibida de quê?
Da
atenção que dava às mulheres, sobretudo, desmascarar o que se fazia às
mulheres. Comecei a pôr muitas coisas dessas na revista. Ia muito à Natália, à
Sophia e aquilo começou a ser um bocado desagradável. Um dia chegou um homem,
disse que eu não ia continuar como chefe de redação por ser muito
insubordinada. Levantei-me, pus o meu casaco, e fui-me embora. Fui ao
sindicato. No dia seguinte, cheguei lá e tinha ordem de despejo.
Foi despedida.
Fui.
A revista também acho que só fez mais um número. (…)
Está quase a sair uma biografia
sua, revê-se no título, Desobediente [escrita
por Patrícia Reis]?
Completamente.
Agora vejo que sempre fui desobediente, talvez seja o que me marca mais.”
Lucas, I. (2024). Um país fascista é uma coisa muito
perigosa. Público, 2, 3, 4, 6.
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