sábado, 8 de abril de 2023

Leituras de porta em porta na Semana da Leitura

 

Um excerto do livro “O Infinito Num Junco” da escritora espanhola Irene Vallejo foi o escolhido pela professora bibliotecária para mais um “Leituras de Porta em Porta”, desta vez dinamizado na Semana da Leitura. Por isso mesmo, impunha-se falar de leitura e sobre a leitura, nomeadamente sobre a forma como se lia na Antiguidade Clássica e sobre a forma como se lê na atualidade, assim como pensar um pouco sobre a dinâmica e sobre a importância das bibliotecas de outrora e as atuais.

Como sempre, esta iniciativa contou com a colaboração de alguns dos alunos monitores da Biblioteca Escolar que, entusiasticamente, fizeram chegar “rolinhos” a todos os que trabalham diariamente na escola - docentes e assistentes operacionais e administrativos.

Aqui fica o interessante excerto mas, honestamente, não se fique por tão pouco. Aproveite a pausa da Páscoa, passe por uma livraria, e delicie-se com o texto integral desta obra.


“Ler é um ritual que implica gestos, posições, objetos, espaços, materiais, movimentos, modulações de luz. Para imaginarmos como liam os nossos antepassados, precisamos de conhecer, em cada época, essa rede de circunstâncias que rodeiam o íntimo cerimonial de entrar num livro.

         O manuseamento de um rolo não é nada parecido com o de um livro de páginas. Ao abrir um rolo, os olhos deparavam-se com uma fila de colunas de texto, uma atrás de outra, da esquerda para a direita, na parte interior do papiro. À medida que avançava, o leitor ia desenrolando o mesmo com a mão direita para aceder ao novo texto, enquanto com a esquerda enrolava as colunas já lidas. Um movimento pausado, rítmico, interiorizado; um baile lento. Quando acabavam de lê-lo, o livro ficava enrolado ao contrário, do final para o início, e a cortesia exigia rebobiná-lo – como as cassetes – para o próximo leitor. A cerâmica, as esculturas e os relevos representam homens e mulheres, presos pela leitura a reproduzirem esses gestos. Estão de pé, ou sentados com o livro no colo. Têm as duas mãos ocupadas; não podem desenrolar o rolo apenas com uma. As suas posições, atitudes e gestos são diferentes dos nossos e ao mesmo tempo são-nos familiares; as costas encurvam-se ligeiramente, o corpo encolhe-se sobre as palavras, o leitor ausenta-se do seu mundo por um momento e empreende uma viagem, transportado pelo movimento lateral das suas pupilas.

         A Biblioteca de Alexandria acolheu muitos daqueles viajantes imóveis, mas não sabemos bem que enquadramento e que lugares oferecia para a leitura. Há apenas descrições, e as que temos são estranhamente vagas. Só podemos conjeturar o que escondem esses silêncios. A informação mais decisiva vem de um autor nascido na atual Turquia, Estrabão, que chegou a Alexandria desde Roma no ano 24 a.C. para trabalhar num grande tratado geográfico com o qual queria complementar as suas investigações sobre história. Na crónica da sua passagem pela cidade – onde conheceu o Farol, o grande dique, o porto, as ruas ortogonais, os bairros, o lago Mareótis e os canais do Nilo -, diz que o Museu faz parte do enorme palácio real. Com a passagem dos séculos, o palácio tinha-se ido ampliando já que cada rei lhe tinha acrescentado novas dependências e edifícios, até que o conjunto chegou a ocupar, segundo Estrabão, um terço da cidade. Nessa extensa fortaleza proibida, à qual poucos tinham acesso, Estrabão contemplou um atarefado microcosmos. Depois de percorrê-lo com um olhar atento, redigiu uma descrição do Museu e do mausoléu de Alexandre, sem dedicar uma única palavra à Biblioteca. (…)

         Onde estava a Biblioteca? Talvez a tenhamos procurado em vão e, embora esteja diante dos nossos olhos, não a vemos porque não é parecida com as nossas expectativas. Alguns especialistas supõem que Estrabão não menciona a Biblioteca, onde sem dúvida trabalhou, porque não era um edifício independente. Talvez fosse um conjunto de nichos abertos nos muros da grande galeria do museu. Ali, empilhados em prateleiras, encontrar-se-iam os rolos, ao alcance dos investigadores. Em divisões anexas armazenar-se-iam documentos e livros de utilização menos frequente, mas mais valiosos e raros.

         É a hipótese mais verosímil sobre as bibliotecas gregas, que não eram salas, mas sim estantes. Não dispunham de instalações para os leitores, que tinham que trabalhar num pórtico contíguo, ensolarado e protegido das inclemências, muito parecido ao claustro de um mosteiro. Se tudo acontecesse como imaginamos, aqueles leitores do Museu de Alexandria escolheriam um livro e procurariam um lugar para se sentarem na êxedra. Ou retirar-se-iam para os seus aposentos para se deitarem. Ou leriam a passear lentamente entre as colunas e diante do olhar cego das estátuas. E assim transitariam pelos caminhos da invenção e das rotas da memória.

 Pelo contrário, no nosso tempo, alguns dos edifícios mais fascinantes da arquitetura contemporânea são precisamente bibliotecas, espaços abertos à experimentação e ao jogo com a luz. Pensemos na admirada Staatsbibliothek de Berlim, projetada por Hans Scharoun e Edgar Wisniewski. Foi aí que Wim Wenders filmou uma cena de Asas do Desejo. A câmara desliza pela enorme sala de leitura aberta, sobe pelas escadas e espreita pelo impressionante espaço vertical desde as passarelas sobrepostas que flutuam como os camarotes de um auditório. As pessoas formigam sob a luz zenital, entre os blocos paralelos de estantes, a carregarem pilhas de livros colados à barriga. Ou permanecem sentadas com vários gestos de concentração (a mão sobre o queixo, o punho a segurar a face, uma caneta que gira entre os dedos como uma hélice…).

         Sem que ninguém chegue a perceber, entra na biblioteca um grupo de anjos ataviados com essa memorável estética dos anos oitenta: sobretudos escuros, camisolas de gola alta e, no caso de Bruno Ganz, o cabelo apanhado num pequeno rabo-de-cavalo. Como os humanos não conseguem vê-los, os anjos aproximam-se em liberdade, sentam-se ao seu lado ou colocam-lhes uma mão no ombro. Intrigados, espreitam pelos livros que estão a ler. Acariciam o lápis de um estudante, a ponderar sobre o mistério de todas as palavras que saem desse pequeno objeto. Ao pé de umas crianças, imitam sem compreendê-lo o gesto de tocar levemente nas linhas com o dedo indicador. Observam à sua volta, com curiosidade e surpresa, rostos ensimesmados e olhares mergulhados nas palavras. Querem entender o que é que os vivos sentem nesses momentos e porque é que os livros prendem a sua atenção com tanta intensidade.

         Os anjos possuem o dom de ouvir os pensamentos das pessoas. Embora ninguém fale, captam à sua passagem um murmúrio constante de palavras sussurradas. São as sílabas silenciosas da leitura. Ler constrói uma comunicação íntima, uma solidão sonora que, para os anjos, é surpreendente e milagrosa, quase sobrenatural. Dentro das cabeças das pessoas, as frases lidas ecoam como um canto à capela, como uma oração.

         Tal como nesta sequência do filme, a Biblioteca de Alexandria devia estar povoada de rumores e sussurros em voz baixa. Na Antiguidade, quando os olhos reconheciam as letras, a língua pronunciava-as, o corpo seguia o ritmo do texto, e o pé batia no chão como um metrómano. A escrita ouvia-se. Poucos imaginavam que fosse possível ler de outra forma.

         Falemos por um momento de si, que lê estas linhas. Neste momento, com o livro aberto entre as mãos, dedica-se a uma atividade misteriosa e inquietante, embora o hábito o impeça de se surpreender com aquilo que faz. Pense bem. Está em silêncio, a percorrer com o olhar filas de letras que fazem sentido para si e lhe comunicam ideias independentes do mundo que o rodeia neste momento. Retirou-se, para dizê-lo de alguma forma, para uma divisão interior onde lhe falam pessoas ausentes, ou seja, fantasmas visíveis apenas para si (neste caso, o meu eu espectral) e onde o tempo passa ao ritmo do seu interesse ou do entendimento. Criou uma realidade paralela à ilusão cinematográfica, uma realidade que só depende de si. Você pode, em qualquer momento, afastar os olhos destes parágrafos e voltar a participar na ação e no movimento do mundo exterior. Mas, entretanto, permanece à margem, onde escolheu estar. Há uma aura quase mágica em tudo isto.

         Não pense que foi sempre assim. Desde os primeiros séculos da escrita até à Idade Média, a norma era ler em voz alta, para si próprio ou para outros, e os escritores pronunciavam as frases à medida que as escreviam ouvindo assim a sua musicalidade. Os livros não eram uma canção que se cantava com a mente, como agora, mas sim uma melodia que saltava para os lábios e soava em voz alta. O leitor convertia-se no intérprete que lhe emprestava as suas cordas vocais. Um texto escrito entendia-se como uma partitura muito básica e por isso apareceriam as palavras, uma atrás de outra, numa cadeia contínua sem separações nem sinais de pontuação – era preciso pronunciá-las para entendê-las. Quando se lia um livro costumava haver testemunhas. Eram frequentes as leituras em público, e os relatos que agradavam andavam de boca em boca. Não precisamos de imaginar os pórticos das bibliotecas antigas em silêncio, mas sim invadidos pelas vozes e pelos ecos das páginas. Salvo exceções, os leitores antigos não tinham a liberdade da qual você disfruta para ler à sua vontade as ideias ou as fantasias escritas nos textos, para parar, para pensar ou para sonhar acordado quando lhe apetece, para escolher e ocultar o que escolhe, para interromper ou abandonar, para criar os seus próprios universos. Esta liberdade individual, a sua, é uma conquista do pensamento independente face ao pensamento tutelado, e foi conseguida passo a passo ao longo do tempo.

         Talvez por esse motivo, os primeiros a ler como você, em silêncio, em conversa muda com o escritor, tenham chamado poderosamente a atenção. No século IV, Agostinho de Hipona ficou tão intrigado ao ver o bispo Ambrósio de Milão ler desta forma que o anotou nas suas Confissões. Era a primeira vez que alguém fazia algo assim à sua frente. É óbvio que lhe pareceu uma coisa fora do normal. Ao ler – conta-nos com estranheza -, os seus olhos transitam pelas páginas e a sua mente entende o que dizem, mas a sua língua cala-se. Agostinho apercebe-se de que esse leitor não está ao seu lado apesar da sua grande proximidade física, mas sim que escapou para outro mundo mais livre e fluído escolhido por ele, está a viajar sem se mexer e sem revelar a ninguém onde podem encontrá-lo. Esse espetáculo parecia-lhe desconcertante e fascinava-o.

         Você é um tipo de leitor muito especial e descende de uma genealogia de inovadores. Este diálogo silencioso entre nós os dois, livre e secreto, é uma invenção surpreendente.”

Vallejo, I. (2020).O Infinito num Junco. Bertrand Editora.









 

 


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