25 de novembro é um dia que a Biblioteca Escolar da Escola Básica e Secundária de Gama Barros não deixa passar em branco.
A cada ano que passa, pensamos que a situação relativamente à violência contra as mulheres vai melhorar, mas as nossas expetativas têm vindo a ser sempre esmagadas pelas estatísticas, e pelas notícias que, quase diariamente, dão conta de um número crescente de mulheres que continuam a ser alvo da violência dos seus namorados, maridos, companheiros…
É com o propósito de sensibilizar os jovens para esta dura realidade, e com um sentido pedagógico, que, anualmente, trazemos especialistas à escola para falar e para suscitar o debate sobre esta questão.
Este ano, tendo em conta a pandemia, adotou-se uma estratégia diferente que, aliás, abrangeu um número muito mais alargado de alunos.
Dinamizou-se mais um Leituras de Porta em Porta e levou-se o tema até à sala de aula. Os professores de Português, e outros docentes, aderiram ao desafio lançado pela professora bibliotecária e abriram as portas das salas de aula à leitura do texto de Afonso Cruz. Diversos cartazes utilizados pela APAV em Campanhas de Sensibilização e algumas notícias publicadas nos Media complementaram o belo texto “Quando as joaninhas de plástico deixam de falar” e suscitaram o debate sobre este trágico fenómeno.
Estiveram envolvidas uma turma de 9.º ano, 5 turmas de 10.º ano, 6 turmas de 11.º ano, 3 turmas de 12.º ano e 1 turma dos Cursos Profissionais, perfazendo um total de mais de 300 alunos.
Um muito obrigada aos professores que, apesar da pandemia, apesar dos currículos, apesar dos exames, e apesar de muitos outros condicionalismos, entendem a escola numa vertente muito mais abrangente, como lugar, cada vez mais, de formação e não de informação.
Aqui fica o texto de Afonso Cruz que foi distribuído a todos os docentes, assistente operacionais e administrativos, e aos alunos envolvidos nesta atividade.
Quando as joaninhas de plástico deixam de falar
“Nas outras ruas também vivem famílias,
em cada janela aparecem pessoas. Ouvem-se relatos de futebol e ouvem-se
músicas, ouvem-se telenovelas, ouvem-se gritos como os da sua casa, ouvem-se
móveis a ranger, ouvem-se pessoas a andar, ouvem-se pessoas a dançar, ouvem-se
pessoas a chorar, ouvem-se pessoas a pensar, ouvem-se pessoas a ser famílias,
ouvem-se coisas a cair. M., com a sua idade de criança, passa pelas janelas,
ouve os vizinhos e ouve as vidas todas iguais. Com os mesmos barulhos. Mas não
se ouve o sofrimento, pois só se ouve o nosso. É uma coisa que nos pertence, só
a nós, como o cartão de cidadão, como o umbigo, como as linhas das mãos e o
modo como deformamos os sapatos ao andar. O sofrimento é um sapato deformado.
M. lembra-se da altura em que a joaninha
de plástico falava. E não era só a joaninha, mas também o urso de pelúcia e as
bonecas. Algum crescimento e algumas dores vão fazendo com que os brinquedos
deixem de falar, como há muito tempo aconteceu com os animais. M. lembra-se da
altura em que, quando adormecia, o seu urso de pelúcia crescia e ficava de um
tamanho grotesco, difícil de caber no quarto. Era assim que a defendia enquanto
dormia, crescendo até ocupar o espaço todo. A boneca loira sentava-se junto
dele e conversavam a noite toda. O urso tinha uma voz fininha e calma, enquanto
a boneca loira tinha uma voz grave e nervosa. E um dia deixaram de falar, tal
como os animais das histórias.
M. olha para as suas mãos, pequeninas, e
lembra-se de quando a mãe lhe disse que o pai iria voltar. Ficou feliz e saltou
de um lado para o outro até ficar cansada. A mãe olhou para ela com olhos
tristes, mas acabou por se rir, deixando-se contagiar pela alegria. A sua irmã
também estava feliz. Quando M. se cansou de correr e gritar, sentaram-se as
três a ver televisão agarradas umas às outras no sofá.
O pai chegou no dia seguinte de manhã,
na companhia da mãe. Tinha os olhos cansados, mas trazia uns doces e parecia
bem-disposto. Agarrou nas filhas, passeou-as pelo ar, abraçou-as e rodou com
elas como se dançasse. M., a princípio tímida, riu de alegria. Uma alegria tão
profunda, que custou a sair. Mas saiu, ao mesmo tempo que a joaninha de
plástico deixava de falar.
As
brincadeiras mudaram. Dantes, o pai estava na prisão e não partia objetos em
casa, nem dava murros nas paredes, nem batia na mãe. Era no tempo em que os
brinquedos falavam. M. tenta corrigir a sua vida, a família. Quando brinca com
bonecos, faz com que ninguém bata em ninguém. Amam-se todos. Mas é difícil
porque as suas mãos levam-na a fazer coisas de que não gosta: o boneco levanta
a mão, que é muito pesada, e agride a boneca. M. faz um esforço para corrigir
isso, mas as mãos continuam a resistir, é a realidade a contaminar a ficção, a
contaminar os sonhos, a contaminar a liberdade. O pai chega sempre bêbado a
casa, mas é meigo com as filhas. O pai esteve preso porque roubou. Antes drogava-se,
endividava-se, tinha duas mulheres, duas famílias. A mãe deixou de trabalhar,
exigência do marido, para que o pudesse visitar com mais assiduidade. M. ouve
isso de outras pessoas sem compreender tudo. Apenas vê chegar um homem, o seu
pai, numa altura em que os seus brinquedos deixam de falar. O seu urso já não
cresce desmesuradamente para a proteger enquanto dorme. A joaninha de plástico
calou-se para sempre. Para sempre.
M.
olha para o pai e pensa: Se ele estivesse
preso, não batia na mãe, pois não? O pai pega nela ao colo e dá-lhe um
beijo na cara, dá-lhe um chocolate. Ela adora chocolates. Uma vez, enquanto
esperava no cabeleireiro, com a mãe, leram-lhe a história de um homem que se
evadiu da prisão porque queria dar um chocolate ao filho, porque nunca havia
dado nada ao filho e não queria morrer sem lhe dar um doce. M. gostou de ouvir
a história. Olha para o pai e interroga-se: será
que ele fugiu para me dar um chocolate? Mas os seus pensamentos partem-se
contra o chão, juntamente com um prato. Foi o pai que o atirou contra a mãe.
(…)
Os dias repetem-se. O pai chega a
casa a ondular, as coisas partem-se, os gritos preenchem tudo. (…) Quando ele
chega perto da mãe, diz que quer um doce. M. pensa que também gostaria de comer
um doce, especialmente de chocolate ou de canela. Mas não há doce nenhum, e é
isso que a mãe diz enquanto lava a loiça, de costas para o marido: «Não há.»
Está tudo muito escuro, apesar de a
luz fluorescente do teto da cozinha iluminar os azulejos brancos e deixar as
caras das pessoas sem expressão, como a carne na montra de um talho. M. começa
a chorar, e a mãe diz para ela ir lá para fora brincar com a irmã. A agressão,
tal como o amor, é um ato íntimo, que se deve fazer num quarto fechado, longe
de toda a gente. Agressor e vítima exigem o mesmo pudor.
As filhas não obedecem e ficam junto
da mãe. O pai está com os olhos vermelhos, com o corpo a andar de um lado para
o outro, parece um barco.
O pai é meigo com ela e com a irmã e
nunca lhes bate. M. sente as pernas a tremer. O pai levanta a mão, que é muito
pesada, e dá um estalo na orelha da mãe porque não há doces em casa, nem de
chocolate nem de canela. M. também gostaria de comer um doce e começa a chorar.
A mãe cai sem sentidos. Cai e, dentro dela, nesse espaço que mais ninguém vê,
já caiu muitas vezes sem sentidos. Aquela é apenas mais uma vez. A sua testa
tem a marca de uma agressão com um jarro de vidro, mas é por dentro que os
jarros de vidro magoam mais, e os estalos nas orelhas, e os murros, e os
pontapés. Dão cabo do interior das pessoas como uma doença. Batem por fora, mas
começam a afundar-se e a entranhar-se dentro das veias, nos pensamentos, nos
intestinos, nos pulmões, no fígado. Crescem com as unhas e com os cabelos e com
os ossos. Uma pessoa fica com metástases das agressões por todo o lado, com a
alma escurecida apesar da luz fluorescente da cozinha, essa luz que nos deixa
com cara de doentes.
As filhas correm a pedir ajuda e
voltam com a irmã do seu pai. A casa torna-se uma grande confusão, e a tia
grita, os vizinhos gritam, o pai grita – então levanta a mão, que é muito
pesada, e bate na irmã. A mãe acorda, confusa, com o olhar desfocado. Demora
uns segundos a conseguir perceber onde está, quem é. Há muita gente à volta, em
todo o lado, há gritos e mais gritos, e há a cara das suas filhas debruçadas em
cima dela.
Fugir
é essencial, é toda a sua vida condensada num momento: fugir. Sair dali. Não é
para sempre, nem é por agora. Não há planos, nem futuro, há apenas uma
necessidade, como ir à casa de banho, como respirar. Pega nas mãos das filhas,
M. está de pijama, e saem a correr, a correr, a correr. Correm pelo meio da
noite enquanto, em casa, o pai e a irmã dele se agridem debaixo de uma luz
pouco lisonjeira, debaixo de uma vida desordeira.
Refugiam-se em casa de uma vizinha
que já as ajudou mais de uma vez. M. olha à sua volta com o estômago
embrulhado. A mãe decide ligar para uma linha de apoio, mas dizem-lhe que
precisa de apresentar queixa na polícia. Confusa, desliga o telefone, pega nas
filhas e vai com elas para casa da sua mãe.
- Para onde vamos? – pergunta M.
- Para casa da avó.
Erram para um lugar demasiado óbvio.
O lugar mais previsível de todos. É como se a vida fosse uma fuga para dentro,
para o útero, para perto dos pais. Isso corrige tudo, um recomeço, uma maneira
de renascer. Voltar para casa dos pais, voltar para dentro da barriga grávida,
recomeçar. Mas este movimento é demasiado fácil para os predadores. Eles sabem
para onde nos dirigimos, eles sabem onde é esse lugar. M. não percebe isso. Mas
depois de acontecer lembra-se de que, quando os jogadores correm, dirigem-se
para a baliza, e toda a gente sabe isso. É por esse motivo que é muito difícil
marcar um golo. Os jogadores correm como cavalos, os músculos tensos, a
latejar, os corpos suam, correm fazendo fintas impossíveis ao destino, criam
adivinhas com os pés, correm como deuses imprevisíveis, correm, mas toda a
gente sabe para onde. Talvez a baliza devesse estar em lugares diferentes.
Assim facilitava-se a fuga em direção ao objetivo. Na nossa vida, pensamos como
num jogo de futebol, em direção à baliza, mas a realidade poderia ser diferente
de um jogo, pois na vida é possível inventar balizas no ar, ou nos lados, ou na
nossa cabeça. E podemos fugir de maneiras diferentes, para lugares
insuspeitados, para lugares onde ninguém nos poderá perseguir. Mas raramente o
fazemos, e a realidade acaba sempre com a baliza no mesmo lugar previsivelmente
cruel, leva-nos a correr para onde toda a gente espera, leva-nos a ser
apanhados, leva-nos a sofrer metodicamente, como se houvesse um plano. M. e a
irmã e a mãe fogem para casa da avó.
A
porta mantém-se fechada. M. olha para ela e tem medo. Por vezes parece-lhe que
a madeira respira e a porta aumenta de tamanho, diminui de tamanho. Lembra-se
das outras vezes que a mãe fugiu com ela e com a irmã, refugiando-se em casa da
avó. E ele aparecia sempre, dava murros na porta, e a casa estremecia, e todas
elas choravam. Uma das vezes arrombou a porta. A madeira caiu morta no chão, e
ele entrou e levou-as de novo para casa. É sempre assim que acabam as suas
fugas.
M. olha para a porta. A madeira
parece respirar. A sua mãe está na cozinha com a avó e com a irmã mais velha. A
porta estremece, a porta solta os seus gemidos de dor, que é o barulho de mãos
fechadas a bater. O pai está do outro lado, a gritar, furioso e com os nós dos
dedos em sangue. Ou talvez seja apenas a imaginação dela, M. não tem a certeza
de nada do que se passa, está tudo distorcido, como as caras dos nossos sonhos.
M. sente as mãos da mãe a pousarem nos seus ombros. Correm as três para a porta
de serviço e fogem pelas traseiras do prédio. (…)
É
tudo repetido: a agressão, a fuga, o voltar para casa. A mãe perdoa sempre, mas
nem Deus é capaz disso: ou não haveria inferno. Enquanto se foge há a certeza
de que a fuga será definitiva, mas a vida tem maneiras diferentes de ter
certezas. Os dias sucedem-se, repetem-se, nascem, morrem. E as ervas fazem o
mesmo: nascem, morrem e tornam a nascer. Se a natureza se porta assim, não há
motivo para que os homens se portem de outra maneira.
A mãe pensa: Desta vez é para sempre. E, ao contrário das vezes anteriores,
acaba por não dizer isto alto.
Quando
chegam a uma casa de refúgio da Santa Casa da Misericórdia, nenhuma delas
consegue mostrar o seu sofrimento, porque ele é demasiado grande para lhes
caber na boca e sair cá para fora. E porque é uma coisa só nossa, como os
sapatos deformados. M. tem vontade de lhes mostrar a joaninha de plástico que
já não fala, mas esta ficou em casa, no seu quarto, estendida no chão, muda
como o urso de pelúcia e a boneca loira. M. diz que os brinquedos deixaram de
falar, e uma senhora abraça-a, uma senhora que ela nunca viu. M. chora, mas não
é de tristeza, é porque não consegue explicar o que sente. Diz que as mãos das
pessoas têm pesos diferentes, umas são mais pesadas do que as outras e fazem
chorar. Devia haver uma balança para pesar as mãos. A senhora abraça-a com mais
força, e os brinquedos deixaram de falar, repete M. A senhora diz que as
pessoas falam e que não conseguem dizer exatamente a sua dor, mas, mesmo assim,
é melhor do que não falar de todo. M. começa a gritar, mas não saem sons, saem
lágrimas. Fica tonta, com vertigens, fica com o corpo cheio do barulho que não
saiu para fora dela.
Os
meses passaram e está tudo melhor. Desta vez não voltaram, pois a mãe, agora,
já não perdoa sempre.”
Cruz, A. (2012). Quando as joaninhas de plástico
deixam de falar. In Associação Link (Ed.), Isto
não É Um Conto – Histórias de violência baseadas na vida de seis mulheres (pp.
83-93). Lisboa: Associação Link.