domingo, 3 de maio de 2020

Dia da Mãe


Este ano não haverá "Leituras de Porta em Porta" para assinalar o Dia da Mãe. Os Alunos Monitores da Biblioteca não percorrerão os diversos espaços escolares para oferecer um rolinho de leitura a alunos, professores, assistentes operacionais e assistentes administrativos. Mas a Biblioteca não se demite da sua função de promoção da leitura.
Aqui ficam dois textos, um em prosa, outro em verso, para assinalar esta data.
Um beijo para todas as mães. Esperamos que gostem.


«A Minha Mãe
Pediram-me que escrevesse sobre a mãe e eu não sei senão da minha e não sei o que fazer. Ando nisto há dias. Não sabia que podia ser tão difícil. Em aflição, pensei mesmo em descrever só estes dias em que fiz o que pude para desculpa de não escrever. Até era capaz de ter graça, no fundo, não tinha graça nenhuma.
Podia escrever, com verdade, pequenas frases assim: tem culpa de tudo; falo com ela todos os dias; zangamo-nos muito; não posso passar sem ela.
Podia escrever, com gratidão, frases mais longas: foi a minha mãe que me comprou um cavalete, telas e tintas para eu pintar; foi a minha mãe que me levou três vezes por semana a uma piscina para que eu aprendesse a nadar; foi a minha mãe que não adormeceu para que eu pudesse sonhar.
Mas também podia escrever, com raiva, coisas assim: deve-se ser exigente, mas não se deve apontar um ideal tão alto que nos faz sentir, por mais que nos esforcemos, necessariamente medíocres; o exemplo vivo educa, mas não a descrição dos exemplos de outros nos quais nunca nos podemos reconhecer, já que não são nossos; é preciso ter a coragem de traçar o limite para lá do qual compreender e aceitar passa a ser uma desculpa ou uma cobardia.
E podia voltar a escrever, com amor: mãe, obrigado por seres exatamente como és; mãe, obrigado por desculpares, sem ser preciso eu pedir, todas as minhas injustiças e todas as minhas faltas; mãe, enquanto eu viver tu vives sempre comigo e quando eu morrer eu vou logo ter contigo.
Podia escrever isto e continuar a escrever sem nunca acabar. Mas não escrevo, apago tudo. No amor não há palavras. Será isso? Sim, é isso, tem de ser isso.»
Pedro Paixão


In Horta, M. T.(1999). A Mãe na literatura portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores.


Minha Mãe

Que Não Tenho


Minha mãe que não tenho     meu lençol
de linho     de carinho     de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância.


Ai água que não bebo em vez do fel
que a pouco e pouco me atormenta a língua.
Ai fonte que eu não oiço    ai mãe ai mel
da flor do corpo que me traz à míngua.

De que Egipto vieste? De qual Ganges?
De qual pai tão distante me pariste
minha mãe    minha dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste

Minha mãe que não tenho    minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila    virgem    buda    corça
ou apenas um mundo em que não entro?

Minha mãe que não tenho inventa-me primeiro:
constrói a casa    a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo    que o teu cheiro
te façam conceber dentro de mim.

Ary dos Santos

In Santos, J. C. A. Dos (1994). Ary – Obra Poética. Lisboa: Editorial «Avante!», SA.



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