segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Dia da Internet Mais Segura assinalado na EBS Gama Barros


O Dia da Internet Mais Segura assinala-se a 7 de fevereiro. Este ano, a data foi assinalada na nossa escola com a atividade “Leituras de porta em porta” que contou, uma vez mais, com a colaboração dos alunos monitores da Biblioteca Escolar. O texto escolhido integra a coletânea «À Roda de uma Vontade» editada pela APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), para assinalar os 30 anos desta Instituição. A APAV apoia vítimas de diversos tipos de crimes, bem como as respetivas famílias, através da prestação de serviços, gratuitos e confidenciais, de natureza jurídica, psicológica, social e emocional. Ao longo dos últimos 30 anos a APAV estima ter apoiado cerca de 330 mil pessoas vítimas de crime.

O texto partilhado com a comunidade escolar é da autoria de Carlos Pinto de Abreu, advogado e vogal da direção da APAV. Neste conto, relata-se a história de uma magistrada, vítima de uso abusivo da sua imagem, que, para além de ter de enfrentar o impacto das consequências desse crime na sua vida pessoal, se vê confrontada com a crítica e a falta de apoio de todos os seus colegas de profissão.

O texto, distribuído a docentes, assistentes administrativos e operacionais e a alunos monitores da Biblioteca Escolar, vinha, ainda, acompanhado de um código QR que viabilizava o acesso a um documento do Centro Internet Segura sobre privacidade na Internet, nomeadamente nas Redes Sociais.

De entre outras Dicas sugeridas no referido documento, destacamos as seguintes:

- Ter sempre perfis privados nas Redes Sociais;

- Limitar a informação/dados pessoais nas Redes Sociais;

- Não aceitar amigos/seguidores por parte de pessoas desconhecidas;

- Não responder a mensagens de desconhecidos ou que peçam informações pessoais – Bloquear ou denunciar esses utilizadores;

- Não colocar tudo o que se faz no dia-a-dia nas Redes Sociais – estas não são um Diário;

- Se necessário, ligar para a Linha Internet Segura – 800 21 90 90 (gratuita).

E não pense que este tipo de situações só acontece aos outros. PODE ACONTECER A SI TAMBÉM.











“FEZ-SE MULHER. ESTUDOU DIREITO: O seu sonho era ser magistrada. A sua missão era promover a justiça e construir a igualdade no mundo. Proteger as vítimas e os inocentes. Restaurar a paz e a concórdia. Estudou muito.

Fez os exames ao CEJ. Entrou. Esforçou-se. Foi das auditoras mais aplicadas. Assumiu o seu percurso iniciático com empenho profissional e humildade intelectual. E tomou posse, finalmente, para poder julgar causas. E julgou. Com paciência. Sabendo ouvir. Enfrentando e decidindo, mesmo os casos mais difíceis. Teve os seus dias de angústia. De dúvidas. De incerteza. Fez sempre o melhor que sabia e podia. Com sacrifício pessoal e familiar.

O medo de errar não a tolheu de modo algum, mas também não a imunizou ou empederniu. Era empática e atenta. Calorosa e determinada. Era mesmo, naquela comarca, e isso pesava-lhe muitíssimo, vista de fora, uma pessoa temida e, dentro do tribunal, uma das mais respeitadas.

O enorme poder de um magistrado é mesmo terrível. Pode restringir e limitar brutalmente a liberdade própria ou a de terceiros. Pode afetar irremediavelmente a honra e a imagem. Quantas vezes decide de forma determinante e irreparável do destino das partes e do seu património. Quantas vezes conforma – ou, se erra, deforma mesmo – a verdade. É um poder que mexe muito com as pessoas. E mexe imenso com o próprio. Se este for responsável, rigoroso, preocupado e humano, claro. (…)

Há magistrados que, quando a causa é própria, acham mesmo que podem ser advogados… em causa própria. Erram. Enganam-se. E, de certo modo, enganam a justiça. Aliás, um advogado em causa própria, diz sabiamente o povo, tem sempre um néscio como cliente. Há magistrados que, arrolados como testemunhas, bloqueiam, hesitam, gaguejam, tal é a pressão e a responsabilidade a que se sentem sujeitos, pois pesam todas as respostas. (…)

A magistrada deste conto era uma pessoa tão trabalhadora e tão equilibrada que nunca se queixou, por um lado, da pendência desumana, da carga excessiva, ou, por outro, alguma vez assumiu as dores das partes e nunca quis ser, ainda que por momentos, advogada, nem para suprir a falta de intervenção de um na sala de audiências. Porque também para um advogado digno desse nome não basta a presença, não informada, desatenta ou desinteressada. Exige-se informação, conhecimento, sabedoria e intervenção. Estratégia e coragem. Bom senso e proatividade.

Era, apesar das suas crenças, porque também as tinha, uma magistrada sempre isenta e imparcial. Esforçava--se por ser e também para ser e parecer ser equidistante e ponderada, sóbria e avisada.(…)

A magistrada deste conto era igualmente humilde e respeitadora. Um expoente de cidadania ativa e de exercício sensato do poder judicial. Não era, nunca, arrogante, nem sequer agreste. Era mesmo um exemplo. Dela, diziam os advogados, era de esperar inteligência e argúcia, mas sobretudo paciência, urbanidade e humanidade.

Também nunca a magistrada deste conto pensou ser vítima.

Era uma pessoa forte. A família, humilde, preparara-a para as dificuldades e obstáculos e ela assumia que era necessário trabalhar no duro, ter dias menos bons, ter revezes inesperados, ter dores esperadas, crescer, sofrer e, por vezes, ser, enfim, humana em toda a sua plenitude e fragilidade.

Um dia, quando menos o esperava, sentiu quase intuitivamente umas conversas que terminavam abruptamente quando se aproximava, umas caras que se voltavam estranhas e envergonhadas, quando pelos corredores passava, até uns risinhos irritantes que se abafavam quando olhava para certos grupos no seu tribunal. Perguntou.

A resposta foi arrasadora. Nunca antes alguém tivera a hombridade ou a coragem de a alertar. Ou de fazer algo para prevenir ou evitar a disseminação brutal dos danos. Que foram depois ampliados nos jornais e na televisão. E a partir daí a magistrada, ainda o sendo, deixou de ser só a magistrada. A magistrada era, agora, mais uma vítima. Não de si mesma, mas de um crime hediondo. De um ato doloso e malévolo de terceiro desconhecido. Da cobardia e da mesquinhez. Do mal e da inveja. Da total insensibilidade. Corriam pelas redes sociais fotomontagens da cara da magistrada em corpos nus que não eram o seu e em poses pornográficas com terceiros com quem nunca privara e que nunca vira. O fenómeno tornara-se viral. Sem confinamento. Sem vacina. Sem cura. Sem retrocesso.

Fosse só isso! Tudo o que à sua volta aconteceu foi cem vezes pior. Os colegas do tribunal, em vez de a apoiarem, julgavam-na, quando não a criticavam; ora, diziam eles, por se ter exposto assim (e isto porque, pasme-se, era usada uma foto da cara retirada do seu Facebook) ou por não se ter defendido assado (porque certamente algo teria feito a magistrada para gerar tal animosidade), ora porque também eles podiam ser alvo de algo assim…

Por força do maldizer, do ouvir dizer e do falatório público, alguns elementos do Conselho Judiciário voltaram-lhe as costas, ostracizaram-na mesmo ou, pior, achavam, em conversas de corredor, cochichadas, hipócritas e não assumidas, que não poderia continuar a exercer a magistratura, tal era, diziam, a vergonha funcional e, pior, o escândalo público que, pasme-se, também a eles lhes causara!

«Não me admirou nada que tivesse acontecido isto; viram as minissaias com que às vezes ia para o tribunal», diziam estas e coisas destas outras más-línguas, calcando mais quem já espezinhada estava.

Sentiu-se então muito só, profundamente injustiçada, miseravelmente abandonada, ainda mais vitimizada. Mas até parecia que todos achavam que também era culpada. Ou, pelo menos, pouco cuidadosa ou avisada.

«Algo teria feito para merecer tudo aquilo», diziam os que não a conheciam. Mesmo alguns conhecidos, e outros ditos seus «amigos», gozaram até com a situação e houve mesmo quem, com total falta de sensibilidade e empatia, andasse a espalhar aquelas imagens ofensivas.

Não perdeu esses «amigos» porque já não o eram, mas perdeu a pouca confiança e autoestima que lhe restava.

E a magistrada até se afastou de outros que eram realmente seus amigos, ou porque estes já não sabiam o que dizer ou o que fazer, ou porque já não conseguia encarar e falar com ninguém, nem mesmo com os seus familiares mais próximos. Fechou-se em casa e, dentro de casa, num casulo de dor. Sofria em silêncio e sem amparo. Sentiu-se cada vez mais humilhada e injustiçada.

O seu namorado não aguentou a pressão…e, porventura, também, a sua depressão. Deixou-a. Mais só ficou.

A família falava egoística e permanentemente na vergonha que lhes caíra em cima - «O que é que nos havia de acontecer…», «És do Tribunal e nem sequer sabes resolver isto que é contigo e nos põe a todos em xeque», «O que é que tu nos fizeste?». Ouviu-os, desculpou-os e ignorou-os até onde pôde, mas depois não aguentou e isolou-se ainda mais, sofrendo sempre em silêncio. Foi assim que, em isolamento total, ferida e incompreendida, sem amor nem apoio, entrou em depressão profunda.

Ninguém a aceitou ou compreendeu. Ninguém a protegeu. Ninguém realmente a apoiou. Mesmo tendo-se queixado imediatamente à justiça, logo que alertada. Mas a justiça nada fez para, pelo menos, tirar aquelas imagens do mundo virtual que, no fundo, destruiu todo o seu mundo real. Mas, no seu caso, não desistiu de fazer justiça. Custasse o que lhe custasse.

A alma da magistrada e o espírito de jurista não a fizeram então parar ou desistir. Mas precisava de ajuda. Contactou um advogado.

Lutou contra tudo e contra todos os que lhe diziam que «não valia a pena procurar uma agulha num palheiro», que era impossível conseguir identificar o autor das colagens e da difusão das imagens pornográficas com a sua cara. O seu advogado também não descansou enquanto não se chegou à origem do ato criminoso.

Foi o seu único apoio naquele momento, mas arrepiava-a a sua objetiva frieza, atitude pragmática e racionalidade exacerbada. Só discutia factos e provas. Possibilidade, plausibilidade e credibilidade. Ilícitos, culpa, nexo de causalidade e dano. Não sentimentos. Só o compreendeu verdadeiramente mais tarde. Mais que mecanismo de defesa era uma tentativa de lhe dar força tentando desviar o foco, retirar carga negativa, minorar o sofrimento.

A sua queixa tinha sido quase imediata e automaticamente arquivada por falta de provas. Sem investigação digna desse nome. Mas houve reabertura do inquérito.

Mais uma vez contra tudo e contra todos, com os requerimentos apresentados, com o esforço e inteligência do novo titular do inquérito e a atenção e dedicação policiais finalmente dadas ao caso foi, enfim, possível descobrir, não o autor, mas sim a autora do crime.

A surpresa foi então terrível.

Fora uma das suas melhores amigas, quem sabe por despeito, inveja ou vingança, que nunca compreendeu, a manipular e colocar as imagens adulteradas e coladas primeiramente no Instagram o que gerou depois uma explosão de visionamentos e de reencaminhamentos para vários outros sites. A prova foi obtida e foi a possível, aguentou-se contra todas as investidas para a descredibilizar ou desvalorizar. O tribunal de primeira instância, depois da defesa, condenou. E o tribunal superior, depois do recurso, confirmou a condenação. Quase meia década depois…

A justiça, muito lenta e particularmente custosa em termos humanos, fez-se onde se tinha que fazer. Mas não chegou minimamente a tempo.

A mulher cujo sonho era ser magistrada, já o não é.

Se não desistiu do seu processo, desistira de exercer a função. Saíra entretanto, com desilusão, amargura, mágoa e tristeza, da magistratura, do sonho pelo qual tanto lutara.

Se não fosse a tardia decisão judicial, o advogado que a apoiara e a nobreza da missão que pessoal e profissionalmente cumprira no pouco tempo em que a abraçara, quase só encontrara, então, burocracia, inércia, insensibilidade, desinteresse e… os risinhos fúteis, as caras (re)voltadas, a hipocrisia e um sentimento de abandono, de hostilidade e de desumanidade que lhe custou mais, muito mais, que ser vítima do crime.

Enfim, talvez por isso mesmo, deixou o foro e abandonou o país.

Emigrou para longe, começou uma vida nova. Voltará um dia mais tarde, certamente, com uma justiça mais atuante, moderna e humana, porque apesar da sua má experiência sabe que tudo poderá melhorar se cada um der sempre o seu melhor. Não nos processos, mas com e para as pessoas com que se interfere no dia a dia.

Com o tempo sararão quase todas as feridas, deixará certamente de ser vítima, embora não de ter sido vítima. Mas, claro, já não voltará a ser magistrada. Voltou a ser simplesmente mulher. Com uma nova vida.

E neste contexto, moral da história, fez-se justiça, e se a história tem alguma moral (!), o advogado ganhou o caso, mas, algures pelo meio do processo ou no fim de tudo, na vida de uma mulher e na de vários de nós e de outros, perdeu muito a justiça.”

 

Abreu, C. P. (2020).Ser mulher. Ser magistrada. Ser vítima. Ser e deixar de ser. In À Roda de Uma Vontade. Trinta Anos da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Quetzal Editores e APAV.


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