Dinâmica
do amor
“Queremos o impossível.
Se começa a parecer possível, deixa de ser o que queríamos. Esta é a lei da
dinâmica das nossas paixões, segundo o poeta Marcial. Ele escreveu no século I
d.C.: «Persegues-me, fujo; foges, persigo-te. É esse o meu carácter: não quero
a tua atenção, quero a tua rejeição.»
Aproximadamente cinco séculos antes, Platão tinha inventado
um mito para explicar a nossa insatisfação perpétua. Na origem, nós, humanos,
éramos seres duplos, com dois sexos, com quatro braços, quatro pernas e duas
cabeças sobre dois pescoços. Para se moverem depressa, esses seres que fomos
rodopiavam ganhando impulso alternadamente com as pernas e os braços, no total
oito extremidades. Com as suas capacidades duplicadas, tinham uma força
prodigiosa, tanto que se tornaram arrogantes e desafiaram os deuses. Zeus
castigou-os cortando cada um em duas partes e advertiu-os de que, se não se
corrigissem, os partiria de novo e teriam de andar ao pé-coxinho. Fez-lhes um
corte e depois esticou a pele cortada para aquilo que hoje é o umbigo, como se
fechasse um saco com um cordel. Desde então, sentimo-nos incompletos, o que nos
faz falta magoa-nos tanto como magoa um membro amputado muito depois da
operação. Quando julgamos reconhecer na outra pessoa algo da nossa metade
perdida, abraçamo-nos a ela, tentando sentirmo-nos um, como no início.
Porém, Marcial diria que essa ideia nos agrada precisamente
por ser inatingível. Segundo ele, se encontrássemos a nossa outra metade por
milagre, não nos fundiríamos com ela: iríamos a correr atrás de outra pessoa
mais incompatível.”
Vallejo. I. (2024).
O Futuro Recordado. Bertrand Editora.
Amor platónico
“Desejar o inalcançável
e construir fantasias costumam ser ingredientes do amor. Quando estes são a
única fonte desse sentimento, estamos a falar de um tipo especial de amor, o
platónico. Mas, na verdade, Platão nunca se ocupou do amor não correspondido ou
impossível, que perdura no tempo em forma de ideal intacto. Como é que o
filósofo explica os nossos enamoramentos?
Tudo começa na Planície da Verdade, para lá do nosso céu. Aí, os deuses desfilam em perfeitas órbitas circulares. São seguidos por um cortejo de almas aladas sem corpo que conduzem carruagens puxadas por dois cavalos. Os deuses avançam com harmonia, mas as almas apresentam um inconfundível comportamento humano: tentam ultrapassar-se umas às outras com as suas carruagens, chocam e golpeiam-se. Algumas caem na Terra com as asas partidas. Então são envolvidas por um corpo e nascem para a vida como crianças sem memória. Um dia, cada pessoa encontra alguém que a deslumbra, recordando-lhe o mundo radiante de onde vem. O apaixonado olha para a bela imagem terrestre e sente um calor ardente que fervilha dentro de si enquanto os cotos da alma fazem cócegas e as suas asas tentam a todo o custo voltar a crescer. Como na carruagem celeste, dois cavalos puxam a alma. Um deles é negro e resiste às rédeas, seduzido pelo fascínio erótico. O outro, branco e dócil, treme diante do amado. O temperamento dos dois cavalos é a razão da nossa luta interior entre o impulso e a timidez, entre a urgência do desejo e a espera paralisante. Segundo Platão, o amor é esse difícil equilíbrio equino.
Vallejo. I. (2023).
Alguém Falou Sobre Nós. Bertrand Editora.