Na Semana da Leitura
não podia faltar uma partilha de textos com a comunidade escolar – professores,
assistentes operacionais e administrativos e alunas monitoras. Desta vez, a escolha
da professora bibliotecária, Filomena Lima, recaiu sobre dois pequenos ensaios sobre
a leitura, da autoria de Irene Vallejo, publicados no livro “Alguém Falou Sobre
Nós”, uma coletânea de ensaios sobre o mundo atual, à luz da sabedoria da
Antiguidade Clássica, ou não fosse a autora uma apaixonada e estudiosa de
Filologia Clássica. Nestes textos, em particular, a autora sublinha a
importância da leitura como um processo que permite a evasão de nós próprios e
a possibilidade de “viajar” por outros mundos e por outras personagens e como
isso contribui para o enriquecimento da nossa linguagem e do nosso intelecto.
A iniciativa contou,
como já vem sendo habitual, com a colaboração das alunas monitoras da
biblioteca escolar, e, desta vez, também com a participação de outras alunas
que pediram para colaborar com as suas colegas. Muito obrigada a todas!
Esperamos que estes
textos sejam do seu agrado.
Boas Leituras!!!
“Os
óculos de outros”
«Os
livros relembram-nos de que somos seres muito peculiares. Porque é que
encontramos tanto prazer na exploração de mundos imaginários? O que é que nos
atrai em todos esses relatos onde se descrevem factos que não aconteceram, e
que são apenas invenções? Alguns cientistas opinam que ler é uma ampliação da
brincadeira infantil e, como as restantes brincadeiras, prepara-nos para a
vida. Os leitores habituam-se a observar com o olho da mente a amplitude do
mundo e a enorme variedade de situações e pessoas que o povoam; é por isso que
as suas ideias são mais ágeis e que a sua imaginação é mais iluminadora.
Para além do mais, quando lemos,
saímos de nós próprios. Projetamo-nos com total liberdade e à nossa vontade nas
personagens de uma história. A perspetiva de sermos transitoriamente pessoas
diferentes é muito atraente para a nossa permanente curiosidade. Todos queremos
ver através de outros olhos, pensar com outras ideias e sentir com outras
paixões. A magia consiste em encará-las totalmente, em pormos os óculos de
outros e observarmos o que se vê através deles, deslizando pelos prazeres ou os
terrores ou as ambições que esse olhar vai revelando. E o melhor é que esta
fantástica operação se executa no campo seguro da imaginação. Assim, quase sem
nos apercebermos, aprendemos a compreender melhor os outros e também o
permanente conflito de interesses que se dá entre os seres humanos. Sem dúvida,
graças a esse salto podemos corrigir erros de perspetiva, livrarmo-nos do nosso
provincianismo e curar o isolamento. Porque muitas vezes, para obtermos o
melhor de nós próprios, precisamos de ser outros.»
“De
fonte segura”
«Ler
ajuda-nos a falar. Graças à leitura conquistamos habilidade verbal e
abundância. Assim as nossas ideias, conduzidas por um impulso fácil, transformam-se,
mais leves, em palavras. «Os livros fazem os lábios», escreveu Quintiliano há
cerca de vinte séculos, com o aval de uma longa trajetória. Trabalhou durante
vinte anos em Roma como professor de Retórica, ou seja, como especialista no
uso de palavras certeiras e poderosas. A sua profissão fez com que
compreendesse que é naquilo que lemos que está o vocabulário das nossas
próprias vidas, com o qual as contamos aos outros e a nós próprios. No dia a
dia, somos todos, à nossa maneira, narradores que pretendem convencer e
encantar, e para isso precisamos dos livros.
O filósofo Séneca encontrava outras vantagens. Acreditava
que ampliam a nossa curta passagem pela vida, porque quem lê acrescenta à sua
vida a de todas as épocas, e dessa forma milhares de anos de conhecimento
fundem-se com o seu. O tempo de cada leitor alarga-se pela confluência entre a
realidade vivida e a imaginária. Séneca via nos livros, que se abrem diante de
nós em toda a sua plenitude e não nos deixam partir de mãos a abanar, a porta
sem fechadura de uma fabulosa câmara do tesouro. Às vezes, encontramos numa
página, de forma prodigiosamente transparente, ideias e sentimentos que nos
eram confusos, e assim a vida parece-nos menos caótica. Através dos livros,
entendemos os nossos próprios motivos e os dos outros e temos mais capacidade
para decifrar o mundo. A leitura torna-nos curiosos, mas não crédulos: os
livros também nos livram deste perigo.»
Vallejo. I. (2023).
Alguém Falou Sobre Nós. Bertrand Editora.