Ontem,
dia 25 de novembro, assinalámos o Dia Internacional para a Eliminação da
Violência contra as Mulheres com mais uma edição das “Leituras de Porta em
Porta”. Desta vez, o texto escolhido foi um excerto de O Som em Mim, da autora
portuguesa Iris Bravo, que nos convida a refletir sobre a realidade da
violência doméstica — um flagelo que, só este ano, já vitimou em Portugal 24
mulheres.
A
iniciativa, dinamizada pela biblioteca escolar, contou com a colaboração
dedicada de algumas alunas monitoras, que distribuíram o texto pelos docentes,
assistentes administrativas e assistentes operacionais.
Mais
do que promover o gosto pela leitura, esta ação pretendeu despertar
consciências, provocar diálogo e alertar a comunidade escolar para um problema
social que continua a marcar vidas e para o qual, infelizmente, ainda não se
vislumbra solução.
Porque ler também é uma forma de não ficar em silêncio.
Aqui fica o texto que foi distribuído.
“Tinha
dezenas de áudios da Kika guardados no meu telemóvel. A minha irmã gravava-os
para mim desde que eu tinha oito anos e arranhei o carro do pai com a
bicicleta. Começou por gravar num gravador com cassetes muito pequenas e foi
evoluindo: incluía estratégias para diferentes cenários ameaçadores que ela
previa, conselhos e canções. Eram a minha rede de segurança quando me sentia
perder o rumo num lar que se desintegrava a cada dia. Depois de fugirmos,
tornaram-se ainda mais frequentes. Faziam-me companhia enquanto ela andava no
Mediterrâneo e davam-me segurança no meio das incertezas.
A Kika contava histórias engraçadas,
enviava teorias interessantes, doidas ou mais ou menos credíveis, de pessoas
que conhecia nos vários trabalhos e, muito importante, previa situações
passíveis de me tirarem o sono e dava-me instruções sobre o que fazer em cada
uma delas.
Os áudios mais importantes, que
reproduzi vezes sem conta, incluíam o pai, como ele poderia fazer queixa à
polícia por me terem «raptado» e como me livrar dele, caso me encontrasse.
Nunca me perdoaria se fosse eu a
denunciar-nos com uma jogada egoísta.
Não pensei com clareza porque estava
cega de raiva pela Nádia e pela Escola Secundária das Olaias. Transtornada pela
rotina insuportável e por saudades da minha outra vida na qual ninguém me
chamaria lixo, caí naquele erro.
Não o podia dizer à minha irmã, mas
não era só da minha antiga vida que tinha saudades.
Não o podia dizer ao pé dela, depois
do que fez para vivermos escondidas, mais o que lhe aconteceu quando foi
despedida do cruzeiro e nunca nos contou. Não parecia ela quando chegou. Ficou
na cama vários dias com um olhar estranho, como se estivesse fora do corpo,
parecido com os drogados que arrumam carros por moedas.
Algo mau aconteceu, e eu não podia
admitir-lhe que não era só de Braga, dos meus animais, do campo, dos amigos e
da escola, também sentia saudades dele.
Saudades do que ele significava, do
estatuto e da proteção que me garantia.
E o mais grave é que não era só disso.
Também sentia saudades do seu rosto barbeado e perfumado de manhã quando lhe
dava um beijo de bons-dias. Saudades de ele me ir buscar à escola, bem-vestido
e bonito, os professores a pararem para o cumprimentar, os pais dos colegas a
puxarem conversa e a elogiarem-lhe o carro.
Saudades do riso dele, quando ria das
próprias piadas em inglês e me desalinhava os cabelos quando eu não as
percebia. Saudades do seu olhar preocupado e ao mesmo tempo orgulhoso, antes de
eu aumentar o tamanho da barreira de obstáculos para saltar com a minha égua.
Saudades de quando ele me encontrou a
chorar na cozinha, porque decidi fazer croquetes de tofu para levar à
quermesse do nono ano e saíram uns cilindros toscos e esturricados. Saudades de
ele me ter abraçado e troçado dos croquetes feios, de me dizer que resolveria o
problema e de ter regressado da rua com
uma caixa de croquetes vegan tão perfeitos que toda a escola quis
provar.
Amava-o e precisava dele, só que
também o odiava, não tanto como a Kika, mas o suficiente para não querer ser a
responsável por ele nos encontrar.
Na última discussão antes de fugirmos,
as mãos dele puxavam os cabelos da minha mãe, à altura da nuca, a arrastá-la
pela casa, a chamar-lhe nomes horríveis, burra, puta, estúpida, vaca de merda,
nomes que ele nunca usava em público, nem para mais ninguém, além da minha mãe
e da minha irmã.
A caminho de casa, (…) imaginei-o a
voltar a fazê-lo se nos descobrisse, a lançar-lhes sopapos e a
responsabilizá-las por terem tornado a «Mariana, a única que se aproveitava»
numa marginal. Imaginei-o a chamar-lhes vacas, putas, inúteis e estúpidas.
As imagens futuras imaginadas misturaram-se com as passadas reais, até a cabeça me doer. As mãos dele a largarem os cabelos da minha mãe para empurrarem a Kika contra a parede, a acertarem-lhe na cara, por se atrever a aparecer, por se ter intrometido, por ser uma estúpida de merda que pensava que lhe fazia frente. Ela já devia saber, se não sabia, ele ia mostrar-lhe como acabavam todas as pessoas que lhe faziam frente.
Só
elas é que acabavam marcadas, nada aconteceu a nenhum dos credores, aos
funcionários que reclamaram salários atrasados ou aos responsáveis da
tesouraria da empresa que lhe fizeram frente. Elas as duas eram as únicas
pessoas que acabavam marcadas. Mesmo quando não lhe faziam frente, elas ficavam
marcadas e ele não marcava mais ninguém.
A
mim também me bateu, mas nunca me marcou, ou, pelo menos, não tanto como a
elas. Nada que eu não lhe perdoasse.
Eu
era a menina dos olhos dele. A sua menina esperta, a sua menina linda. A que
lhe seguiria as pegadas no negócio da família quando tirasse o curso de gestão.
Eu
não queria gerir nada, nem pensar em lucros ou despesas. Queria biologia,
natureza, ecologia, bichos, sustentabilidade, proteger espécies e habitats.
«Podes
ser ecologista como hobby, mas uma cabecinha tão boa como a tua tem de
tirar gestão, vais desperdiçar-te em biologia, Marianinha.»
Não
o contrariei, disse-lhe que iria para ciências e entraria em gestão com a
específica de matemática. Deixei o confronto para mais tarde. Se não tivéssemos
fugido de casa, talvez só lhe dissesse no dia da candidatura que pus a cruz na
biologia e não na gestão. Ou, se calhar, só no primeiro dia de faculdade, ou
quando passasse para o segundo ano, ou na Queima das Fitas. Eu nunca o
contrariava, era por isso que eu era a sua menina querida.
Era
por isso que eu lhe conhecia a outra face, a que não criava momentos de terror
e maldade. (…)
Talvez
ele também não quisesse casar e ter filhos, como eu também não queria. «Fazes
bem, Marianinha, se eu soubesse o que sei hoje…»
Eu
suspeitava de que a Kika tivesse nascido por acidente, ou que a mãe tivesse
engravidado contra a vontade dele. Nunca mo explicou assim, mas foi algo que
deduzi em algumas conversas em que ele se deixou levar, nos tempos em que eu
montava a Mimosa e ele o Duque pelo campo em volta do rio Cávado.
(…)
-
É mesmo verdade? Vocês estão escondidas? Porquê?
Se
me queria juntar a ele em alguns intervalos, não podia tornar-me numa múmia
quando me fazia perguntas.
-
Fugimos porque o meu pai batia na minha mãe e ninguém acreditou, porque ele parece
ser boa pessoa. Ele era importante, tinha uma empresa grande e muitos amigos, e
deve estar à nossa procura, por isso, quanto mais discretas formos, melhor. Por
favor, não contes a ninguém (…)
-
Então, se ele tinha uma empresa grande, vocês lá em Braga eram assim, tipo,
ricos?
Encolhi
os ombros porque os factos que nos levaram à falência não eram claros para mim,
custava-me acreditar que alguém que sabia de cor o nome científico de todos os
pássaros pudesse ser responsável por todos os erros que a Kika lhe apontava.
-
Sim, acho que sim, antes de a empresa começar a dar problemas. O Tó cruzou os
braços e fitou-me cada vez mais atento.
-
E mesmo quando eram, tipo, ricos e importantes, o teu pai também arreava na tua
mãe? Viste isso acontecer? À tua frente?
Vira,
muitas vezes, mas a memória que me invadiu era tão antiga que nem sabia quando
se passara. Estava agarrada às pernas da minha mãe, olhava para cima e não
compreendia porque é que ela soluçava. «Olha a menina, olha a menina, olha a
menina», como se o pai não me estivesse a ver, ali mesmo, no meio das pernas
deles. Depois a Kika a puxar-me, levantar-me pela cintura e a subir a escada, a
apertar-me, com a cara muito vermelha.
-
Sim, vi acontecer à minha frente e, noutras vezes, soube que aconteceu porque a
minha mãe ficava com nódoas negras na cara e nos braços.
O
Tó parecia cada vez mais confuso e remexeu a franja que lhe tapava os olhos.
-
Porra, que ganda merda. Afinal, não serve de muito ser-se rico, se as
mães levam na tromba à mesma.
Percebi
que era uma declaração de igualdade.
- Sim, acho que sim.”
In Bravo, I.
(2024). O Som Em Mim. Cultura
Editora.
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