segunda-feira, 13 de abril de 2020

Ainda a propósito de “O Rapaz Escondido” de Catherine Marsh…


Para que te motives para a leitura deste livro, aqui ficam excertos do Capítulo 1.
Seguem-se, também, dois links de vídeos sobre dois campos de refugiados - um no Iraque, e outro na Europa, onde poderás aperceber-te da dura realidade vivida por crianças e jovens como tu, nestes locais.
Não deixes de ver…



“Tinham propositadamente esperado por uma noite de julho nublada e sem lua. Segundo os traficantes, com essas condições era menos provável que a guarda costeira grega os detetasse.
Todavia, naquele momento, a sua invisibilidade era um problema. A parte de cima do pequeno barco de borracha a remos balançava a meros dez centímetros da superfície do mar Egeu, vários centímetros mais afundado do que quando tinham dado início à viagem. Não conseguiam ver a costa. O comandante tentava pôr o motor em funcionamento enquanto as silhuetas de 18 homens, 3 mulheres e 4 crianças se amontoavam. Alguns tinham coletes de salvação que mal lhes serviam e a maioria nem sequer sabia nadar.
- Se o motor não pegar, vamos afundar-nos – disse uma das mulheres, com a voz fraca a aumentar de volume com o pânico.
Ninguém discordou.
Ahmed Nasser abraçou o colete de salvação. Era demasiado pequeno para um rapaz de 14 anos, principalmente um rapaz quase tão alto quanto o pai. Recordava-se das histórias que ouvira na Turquia: de contrabandistas que vendiam coletes defeituosos que faziam com que as pessoas afundassem em vez de flutuarem.
Sentiu que a mão de alguém lhe tocava no ombro.
- Ahmed, minha alma, não tenhas medo.
Ahmed olhou para o pai, para o enorme corpo encaixado contra a lateral do barco. Levava uma câmara de ar ao ombro e tinha um sorriso calmo, como se soubesse que tudo ia correr bem. Contudo, o odor dos corpos, sujos e suados, os olhares apavorados e a enjoativa agitação do mar picado contavam uma história bem diferente.
- A mulher tem razão – sussurrou Ahmed. – O barco está a esvaziar-se. Se o motor não começar a trabalhar…
- Chiu – fez o pai.
A sua voz era imperiosa mas gentil, como se estivesse a acalmar uma criança. No entanto, Ahmed já tinha idade para conhecer a impotência que existia por trás dela. Pensou na mãe, nas irmãs e no avô – seria a sua morte pior do que a deles? O pai garantira-lhe que não tinham sofrido. De certeza que a deles tinha sido mais rápida do que aquilo. Não houvera tempo para falsas palavras de conforto.
Menos de dez quilómetros separavam a costa da Turquia da ilha grega de Lesbos. Ahmed tentou entrever luzes em terra, ou até de outro barco, mas não conseguiu. Onde ficava a Europa? Onde estava o resto do mundo? Não se via nem uma estrela que prometesse a existência de outro lugar. O céu estava tão negro quanto o mar. Nem conseguia ver o mostrador do relógio de aço inoxidável que o pai usara até ao início daquela noite, quando lho apertara em redor do pulso. Tinha pertencido ao seu bisavô e era um Omega Seamaster, nome que naquele momento lhe parecia irónico.
- Baba, sabes que não sei nadar – sussurrou Ahmed.
- Não vais ter de fazê-lo – disse-lhe o pai.
Ainda assim, a água já lhe encharcava os ténis. Sentia-a oscilar para a frente e para trás no fundo do barco. As pessoas começaram a atirar as malas para o mar, numa tentativa de aliviar o peso. O rapaz viu as malas baloiçar, depois afastarem-se a boiar ou afundarem-se. Outros tentaram tirar água recorrendo a garrafas de plástico, mas o gesto não parecia fazer diferença. A mulher sentada à frente deles começou a chorar. Pela primeira vez, Ahmed reparou que ela trazia um bebé num sling.
- Não chores – aconselhou o pai de Ahmed num tom ligeiro. – Já há água suficiente no barco.
Contudo, esse comentário só fez com que a mulher chorasse ainda mais.
- Allahu Akbar – rezaram várias pessoas.
- Baba…
- A mulher tem razão – interrompeu o pai. – Temos de manter o barco em movimento. Mas não te vais afogar. Nem os outros.
Ahmed reparou que ele olhava para a mulher com o bebé e em seguida para os outros ocupantes do sobrelotado barco, todos desesperados e assustados. Baba tirou a câmara de ar do ombro e passou-a por cima da cabeça e em redor do tronco de Ahmed. Em seguida, inclinou-se e sussurrou-lhe ao ouvido.
- Perdoa-me, minha alma. Tenho de te deixar por momentos.
- Deixar-me? Onde?
Mas o pai já se afastava.
- Baba!
Ahmed tentou alcançá-lo, dando-se conta de que tinha os braços presos ao corpo pela câmara de ar. Quando conseguiu libertá-los, o pai já passava a perna pela borda do barco.
O rapaz lançou-se para a frente com o intuito de agarrá-lo, mas era demasiado tarde. O pai deslizou para dentro da água escura como uma enguia. Logo depois reapareceu, boiando.
- Que estás a fazer? – gritou-lhe Ahmed.
- Temos de rebocar o barco. – O seu pai perscrutou os rostos dos passageiros. – Mais alguém sabe nadar?
Eram oriundos de diversos locais – Síria, Afeganistão, Iraque -, mas Ahmed percebeu pelas expressões desamparadas com que olhavam uns para os outros que tinham uma coisa em comum: nenhum deles sabia nadar.
Foi então que uma voz atrás deles disse em árabe com um sotaque iraquiano:
- Eu sei.
Ahmed voltou-se. Um homem franzino e seco despiu o casaco e depois a camisa. Entregou-os a uma mulher sentada ao seu lado, que dobrou as peças de roupa muito bem como que a informá-lo de que o esperava de volta. Havia uma menina entre eles, meio engolida pelo colete de salvação.(…)
Ahmed tentou dar a câmara de ar de volta ao pai, mas este recusou-se a aceitá-la, argumentando que só iria atrasá-lo. Os homens nadaram para a frente do barco e, enquanto um dos passageiros iluminava as águas escuras, ataram o cabo de reboque em redor da boia, falando num tom tão baixo que Ahmed não conseguiu ouvir o que diziam. Depois, cada um deles agarrou-se ao cabo com uma das mãos, bateu as pernas e remou com o braço livre. O pai de Ahmed nadava à frente e os outros dois homens logo atrás.
O barco avançou, como se empurrado por uma mão gigante.
Os passageiros deram vivas e gritaram «Deus seja louvado!» (…)
Foi então que veio a onda lateral.
Ahmed não a viu, mas sentiu-a. Inclinou o barco de borracha para um dos lados e pareceu segurá-lo aí, como se avaliasse a resistência dos passageiros. Ahmed inspirou todo o ar que conseguiu, esperando ser atirado borda fora. Contudo, a onda permitiu que o pequeno barco deslizasse por ela e abateu-se sobre os nadadores, fazendo-os desaparecer por completo. Logo em seguida, arrancou a boia do cabo e atirou com ela para a escuridão.
Instalou-se um segundo de silêncio, o choque antes de começarem todos a chamar e a iluminar a superfície da água com as lanternas dos telemóveis.
- Onde estão? Alguém consegue vê-los?
O comandante apareceu à superfície a cuspir água. O iraquiano emergiu logo ao lado a arquejar, a mão ainda agarrada ao cabo.
Mas onde estava Baba?
Ao longe, por entre a chuva intensa, Ahmed acreditou ter visto a cabeça do pai a aparecer à superfície.
- Baba! – gritou.
Mas não obteve resposta e, quando voltou a olhar, tudo o que viu foram ondas coroadas por espuma branca.


In Marsh, K. (2018). O Rapaz Escondido. Amadora: TopSeller.


 










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