segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O Regicídio em "D. Amélia" de Isabel Stilwell

 

Ainda no âmbito da evocação do Regicídio, deixamos mais uma sugestão de leitura, desta vez um excerto do livro “D. Amélia – A rainha exilada que deixou o coração em Portugal”.


“Estação fluvial de Lisboa, 1 de Fevereiro de 1908

 

A viagem tinha sido longa, o comboio descarrilara ali por altura de Casas Brancas, parara duas horas com uma avaria. Amélia tinha telegrafado a Manuel a avisar do atraso. O príncipe respondera que lhe dava jeito mais umas horas para praticar o piano, que Rey Colaço lhe daria assim aula até mais tarde. Amélia comentara divertida com Luís Filipe:

- Suspeito que o mano se tem divertido à grande, sem a mãe para o obrigar a cumprir horários.

Agora atravessavam o rio, um dia gelado mas de céu azul, «os meus favoritos», confessara, para elogiar a vista da cidade que com esta luz fica deslumbrante, comentara, enquanto segurava o filho pelo braço.

- Não se incline assim, Luís Filipe, que cai.

- O príncipe chegou-se perto, e cobriu-a com o seu casacão, enquanto lhe dizia ao ouvido:

- A caçada foi boa, minha querida mãe?

Amélia apertou-lhe a mão e sorriu.

- Ontem à noite estava um bocadinho melodramática, filho, desculpe…

Percebo as suas angústias, não sou uma criança. Lembre-se de que estava lá no dia em que a carruagem de Afonso e Ena foi pelos ares. Também tenho medo, há alturas em que tenho mesmo muito medo.

Amélia virou-se, aflita:

- Filho…

- É claro que ando armado, mãe, e o pai também. Não podemos evitar os perigos, mas podemos tentar defender-nos deles…

Amélia olhou-o, angustiada.

- Implorei ao pai para que insistisse com o João Franco para vos dar proteção, a si e a ele. Mas o pai diz que vai atravessar a cidade de landau aberto, ainda agora recusou que nos viessem buscar de carro. Garante que agora, agora que os cabecilhas da revolução estão presos, não há grande perigo…

- Mãe, se o pai acreditasse que havia perigo acha que a deixava a si, ou a mim e ao Manuel correr perigo? Corajoso como é, atravessava o Terreiro do Paço a pé, se fosse preciso, mas não nos sujeitava a qualquer risco…

Amélia acenou que sim com a cabeça. Era verdade o que Luís Filipe dizia, mas temia que Carlos estivesse a avaliar mal a situação, por toda a Europa corriam os atentados.

- Olhe – disse Luís Filipe, aproveitando para a distrair -, olhe quem está ali a acenar-lhe, o seu bebé, o seu Manolito…

A rainha virou-se para o cais que se aproximava e que estava cheio de gente, os ministros que esperavam o rei, alguns dos seus amigos, e Manuel, com Kerausch ao lado, que sem vergonha lhes acenava.

Amélia olhou para o relógio. Eram cinco da tarde – aquela pobre gente tinha esperado e bem. Foi a primeira a desembarcar. Abraçou o filho mais novo com força e aceitou as flores de uma criança de bochechas rosadas. Deu-lhe um beijo rápido e foi cumprimentando os que gostava e os que não gostava até chegar a carruagem…

 

Falavam entre eles. Manuel contava-lhes entusiasmado como a Never Mind, a égua favorita da rainha, estava coxa. Amélia dava-lhe pormenores do descarrilamento. Carlos troçava da falta de pontaria de Luís Filipe: «Houve pelo menos um porco que se ficou a rir do seu irmão», enquanto o herdeiro lhe fazia uma careta e Manuel ria divertido.

A carruagem era precedida de dois batedores, e as restantes da comitiva tinham-se atrasado.

Subitamente o ruído de um tiro. Amélia virou os olhos aterrorizada para o lado de onde viera o estalido. De joelho assente na rua, um homem de barba negra e capa fazia pontaria e disparava.

Pelo canto do olho, captou um vulto que corria na direção do landau e se dependurava de um dos seus estribos. Quando deu por si estava em pé, as flores na mão fustigavam a cara do homem que de revólver na mão disparava sobre todos eles. La Grande, alta, aterrorizada, batia-lhe e gritava «Infames», «Infames».

Luís Filipe estava de pé e o seu revólver fumegava.

«Claro que ando armado, mãe. Eu protejo o meu pai, eu mato quem o matar», a frase ecoava-lhe nos ouvidos. Gritou. Mandou-o sentar. Berrou-lhe que se protegesse. E viu o seu corpo cair, uma ferida imensa na cara, de onde jorrava sangue. Viu Manuel a puxar do lenço, a enxugar o sangue que corria, o lenço tingido, ensopado, a pingar.

- Luís Filipe não, o meu filho não – gritava alto. Mais dois tiros soaram, e em terror, tanto terror como nunca tinha sentido antes, louca de terror berrou ao cocheiro:

- Tire-nos daqui.

O tiroteio continuava cerrado. Já nem se virara para a rua, só para o seu filho.

- Tire-nos daqui, tire-nos daqui – repetia, desvairada.

- Respira, ainda respira, Luís, meu querido, meu querido filho, aguente, vamos chamar o médico, vamos para o Hospital da Estrela, meu querido filho.

Tomava-o nos braços e embalava-o, o vestido ensopado no sangue, que era afinal o seu, a esperança a impedi-la de enlouquecer.

- Tire-nos daqui, tire-nos daqui – gritava de novo.

O cocheiro fustigava os cavalos que galopavam assustados pela calçada, o cocheiro a puxar as rédeas, a conduzi-los para a Rua do Arsenal, era só preciso passar o portão do Arsenal da Marinha, lá dentro estariam seguros. Ouviu uma nova silvada de tiros e Manuel gritou:

- Deixe mãe, foi só uma bala de raspão no braço – sossegou-a. Dois homens saltaram sobre o estribo. Reconheceu o marquês de Lavradio.

- Salve-o, salve-o – implorou, enquanto o segundo homem, ofegante da corrida que fizera pelo terreiro, tomava o pulso do príncipe.

- Ainda respira, senhora.

O corpo pesado de Carlos estava dobrado sobre si mesmo, ligeiramente inclinado para o lugar que a mulher ocupara, como se buscasse o seu apoio. O corpo crivado de balas, um boneco que abanava a cada solavanco, ignorado, esquecido, porque Amélia só via Luís Filipe, só Luís Filipe lhe importava.

- El-rei está morto – disse Lavradio, e Amélia repetiu alto, a voz estridente:

- El-rei está morto.

O landau entrou pelo portão do Arsenal e os marinheiros tentaram parar os cavalos, as mãos lançadas aos freios, enquanto outros acorriam ao rei e à rainha, aos corpos, aos mortos, aos vivos.

- Depressa, depressa um médico – gritava Amélia. Manuel ajudava os guardas a tirar o corpo do irmão e a estendê-lo no chão do barracão, o corpo de Luís Filipe ao lado do corpo de Carlos, estendido sobre dois sacos de serapilheira, a cama de reis, a sepultura de dois cadáveres.

Amélia ajoelhou-se sobre o corpo do filho e sentiu uma tontura, perdeu os sentidos. Manuel suportou-lhe o corpo, e gemeu, o sangue a correr-lhe do braço, mas Amélia voltou a si. «Como era possível que fraquejasse num momento destes?», pensou, zangada consigo mesma, «o meu filho ainda precisa de mim».

A condessa de Figueiró, que chegara na carruagem atrás, veio ao seu encontro.

Pepita gritava, agarrada à sua senhora, mas Amélia sacudiu-a, impaciente.

- Um médico, um médico – insistia, e ajoelhava-se junto do príncipe, a cara desfeita pelo tiro da carabina, os olhos fechados.

- Já não respira, Sua Alteza – disse-lhe, numa voz sussurrada, um dos soldados que tomara o pulso do príncipe.

- Mataram o meu filho – disse Amélia, e Manuel encostou-se à mãe a soluçar. Passou a mão distraída pelo cabelo do filho mais novo, parecia sossegar, mas subitamente disparou em direção ao portão, como uma flecha. Tinha acabado de o ver. João Franco lívido, ofegante, entrava a correr pelo portão, sozinho, saltara da carruagem da comitiva e atravessara o terreiro pelo seu pé.

Esquecida de tudo, avançou sobre ele fora de si. Este homem roubara-lhe tudo. Os assassinos tinham disparado as armas, mas fora ele, só ele, que tornara possível o crime. Acusou-o: «Mataram el-rei, Mataram o meu filho!» Sabia que se tivesse na mão uma arma, se tivesse na mão a pistola do seu filho, o teria morto.

Lavradio deu-lhe o braço e apertou-o com força, puxando-a de novo ao pátio, aos corpos deitados no chão.

Trouxeram-lhe uma cadeira. Cobriram-na com cobertores. E assim ficou a rezar baixinho, ao lado dos seus, sem ver os ministros e os amigos que entravam e saíam, como se precisassem de ver para crer.

Só uma voz a fez despertar, talvez fosse o facto de lhe falar em francês, como se encontrasse na língua, na sua língua, um colo.

Ergueu-se de um salto.

- Mataram o meu filho – murmurou em voz baixa Maria Pia, a sua sogra, uma sombra do que era.

- O meu também – retorquiu Amélia, a dor em cada sílaba estridente.

A rainha-mãe olhou-a estarrecida. Arrastada da Ajuda para o Arsenal só agora compreendia: perdera o filho e o seu adorado neto.

Deixou-se cair sobre os joelhos e chorou.

 

«Porque não morri também? Porque não me mataram? Esses vermes, esses infames, porque não me mataram a mim?», repetia, como que numa ladainha, a cabeça de Manuel deitada sobre o seu colo, na carruagem fechada e escoltada pela cavalaria da guarda municipal que os levava para as Necessidades.

Manuel gemeu:

- Não diga isso, mãezinha, não diga isso, mãe, não me deixe sozinho.

Amélia ajeitou o braço ligado do seu pequenino e beijou-lhe a testa.

Tinha ao colo o rei de Portugal. (…)"

Stilwell, I. (2010). D. Amélia – a rainha exilada que deixou o coração em Portugal. Lisboa: Esfera dos Livros.

 


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