Para
que te motives para a leitura deste livro, aqui ficam excertos do Capítulo 1.
Seguem-se,
também, dois links de vídeos sobre dois campos de refugiados - um no Iraque, e
outro na Europa, onde poderás aperceber-te da dura realidade vivida por
crianças e jovens como tu, nestes locais.
Não deixes de ver…
“Tinham
propositadamente esperado por uma noite de julho nublada e sem lua. Segundo os
traficantes, com essas condições era menos provável que a guarda costeira grega
os detetasse.
Todavia,
naquele momento, a sua invisibilidade era um problema. A parte de cima do
pequeno barco de borracha a remos balançava a meros dez centímetros da
superfície do mar Egeu, vários centímetros mais afundado do que quando tinham dado
início à viagem. Não conseguiam ver a costa. O comandante tentava pôr o motor
em funcionamento enquanto as silhuetas de 18 homens, 3 mulheres e 4 crianças se
amontoavam. Alguns tinham coletes de salvação que mal lhes serviam e a maioria
nem sequer sabia nadar.
-
Se o motor não pegar, vamos afundar-nos – disse uma das mulheres, com a voz
fraca a aumentar de volume com o pânico.
Ninguém
discordou.
Ahmed
Nasser abraçou o colete de salvação. Era demasiado pequeno para um rapaz de 14
anos, principalmente um rapaz quase tão alto quanto o pai. Recordava-se das
histórias que ouvira na Turquia: de contrabandistas que vendiam coletes
defeituosos que faziam com que as pessoas afundassem em vez de flutuarem.
Sentiu
que a mão de alguém lhe tocava no ombro.
-
Ahmed, minha alma, não tenhas medo.
Ahmed
olhou para o pai, para o enorme corpo encaixado contra a lateral do barco.
Levava uma câmara de ar ao ombro e tinha um sorriso calmo, como se soubesse que
tudo ia correr bem. Contudo, o odor dos corpos, sujos e suados, os olhares
apavorados e a enjoativa agitação do mar picado contavam uma história bem
diferente.
-
A mulher tem razão – sussurrou Ahmed. – O barco está a esvaziar-se. Se o motor
não começar a trabalhar…
-
Chiu – fez o pai.
A
sua voz era imperiosa mas gentil, como se estivesse a acalmar uma criança. No
entanto, Ahmed já tinha idade para conhecer a impotência que existia por trás
dela. Pensou na mãe, nas irmãs e no avô – seria a sua morte pior do que a
deles? O pai garantira-lhe que não tinham sofrido. De certeza que a deles tinha
sido mais rápida do que aquilo. Não houvera tempo para falsas palavras de
conforto.
Menos
de dez quilómetros separavam a costa da Turquia da ilha grega de Lesbos. Ahmed
tentou entrever luzes em terra, ou até de outro barco, mas não conseguiu. Onde
ficava a Europa? Onde estava o resto do mundo? Não se via nem uma estrela que
prometesse a existência de outro lugar. O céu estava tão negro quanto o mar.
Nem conseguia ver o mostrador do relógio de aço inoxidável que o pai usara até
ao início daquela noite, quando lho apertara em redor do pulso. Tinha
pertencido ao seu bisavô e era um Omega
Seamaster, nome que naquele momento lhe parecia irónico.
-
Baba, sabes que não sei nadar – sussurrou Ahmed.
-
Não vais ter de fazê-lo – disse-lhe o pai.
Ainda
assim, a água já lhe encharcava os ténis. Sentia-a oscilar para a frente e para
trás no fundo do barco. As pessoas começaram a atirar as malas para o mar, numa
tentativa de aliviar o peso. O rapaz viu as malas baloiçar, depois afastarem-se
a boiar ou afundarem-se. Outros tentaram tirar água recorrendo a garrafas de
plástico, mas o gesto não parecia fazer diferença. A mulher sentada à frente
deles começou a chorar. Pela primeira vez, Ahmed reparou que ela trazia um bebé
num sling.
-
Não chores – aconselhou o pai de Ahmed num tom ligeiro. – Já há água suficiente
no barco.
Contudo,
esse comentário só fez com que a mulher chorasse ainda mais.
-
Allahu Akbar – rezaram várias
pessoas.
-
Baba…
-
A mulher tem razão – interrompeu o pai. – Temos de manter o barco em movimento.
Mas não te vais afogar. Nem os outros.
Ahmed
reparou que ele olhava para a mulher com o bebé e em seguida para os outros
ocupantes do sobrelotado barco, todos desesperados e assustados. Baba tirou a
câmara de ar do ombro e passou-a por cima da cabeça e em redor do tronco de Ahmed.
Em seguida, inclinou-se e sussurrou-lhe ao ouvido.
-
Perdoa-me, minha alma. Tenho de te deixar por momentos.
-
Deixar-me? Onde?
Mas
o pai já se afastava.
-
Baba!
Ahmed
tentou alcançá-lo, dando-se conta de que tinha os braços presos ao corpo pela
câmara de ar. Quando conseguiu libertá-los, o pai já passava a perna pela borda
do barco.
O
rapaz lançou-se para a frente com o intuito de agarrá-lo, mas era demasiado
tarde. O pai deslizou para dentro da água escura como uma enguia. Logo depois
reapareceu, boiando.
-
Que estás a fazer? – gritou-lhe Ahmed.
-
Temos de rebocar o barco. – O seu pai perscrutou os rostos dos passageiros. –
Mais alguém sabe nadar?
Eram
oriundos de diversos locais – Síria, Afeganistão, Iraque -, mas Ahmed percebeu
pelas expressões desamparadas com que olhavam uns para os outros que tinham uma
coisa em comum: nenhum deles sabia nadar.
Foi
então que uma voz atrás deles disse em árabe com um sotaque iraquiano:
-
Eu sei.
Ahmed
voltou-se. Um homem franzino e seco despiu o casaco e depois a camisa.
Entregou-os a uma mulher sentada ao seu lado, que dobrou as peças de roupa
muito bem como que a informá-lo de que o esperava de volta. Havia uma menina
entre eles, meio engolida pelo colete de salvação.(…)
Ahmed
tentou dar a câmara de ar de volta ao pai, mas este recusou-se a aceitá-la,
argumentando que só iria atrasá-lo. Os homens nadaram para a frente do barco e,
enquanto um dos passageiros iluminava as águas escuras, ataram o cabo de
reboque em redor da boia, falando num tom tão baixo que Ahmed não conseguiu
ouvir o que diziam. Depois, cada um deles agarrou-se ao cabo com uma das mãos,
bateu as pernas e remou com o braço livre. O pai de Ahmed nadava à frente e os
outros dois homens logo atrás.
O
barco avançou, como se empurrado por uma mão gigante.
Os
passageiros deram vivas e gritaram «Deus seja louvado!» (…)
Foi
então que veio a onda lateral.
Ahmed
não a viu, mas sentiu-a. Inclinou o barco de borracha para um dos lados e
pareceu segurá-lo aí, como se avaliasse a resistência dos passageiros. Ahmed
inspirou todo o ar que conseguiu, esperando ser atirado borda fora. Contudo, a
onda permitiu que o pequeno barco deslizasse por ela e abateu-se sobre os
nadadores, fazendo-os desaparecer por completo. Logo em seguida, arrancou a
boia do cabo e atirou com ela para a escuridão.
Instalou-se
um segundo de silêncio, o choque antes de começarem todos a chamar e a iluminar
a superfície da água com as lanternas dos telemóveis.
-
Onde estão? Alguém consegue vê-los?
O
comandante apareceu à superfície a cuspir água. O iraquiano emergiu logo ao
lado a arquejar, a mão ainda agarrada ao cabo.
Mas
onde estava Baba?
Ao
longe, por entre a chuva intensa, Ahmed acreditou ter visto a cabeça do pai a
aparecer à superfície.
-
Baba! – gritou.
Mas
não obteve resposta e, quando voltou a olhar, tudo o que viu foram ondas
coroadas por espuma branca.
In Marsh, K. (2018). O Rapaz Escondido. Amadora: TopSeller.
Sem comentários:
Enviar um comentário