E
se alguém acreditava, oh que coitados, sofriam de loucura brava! (…)
E
assim, de boca em boca, se fez de várias versões uma história encantadora que
nunca teve gravações.
Foi
avançando com o tempo esta história que nunca foge, andou por vários
continentes até chegar aos dias de hoje. (…)
Será
que esta história ia deixar de ficar na memória?
Um
dia tudo mudou, já não encontrávamos palavras a viajar de boca em boca, a cada
dia que passava havia menos gente louca. (…) Tudo acabou assim da noite para o
dia, não mais se soube dessa história cheia de fantasia.
Mas
numa pequena cidade do interior de um país muito pequeno algo estava para
acontecer. As pessoas estavam tristes e andavam sempre de dedos em riste,
acusavam e gritavam, depois desistiam e choravam. Havia muita tristeza no ar e
acreditava-se que as gotas que caíam no mar resultavam dos vapores das lágrimas
de toda a povoação. Parecia não haver solução.
O
Presidente da Câmara não abandonava o seu gabinete, despachava ordens usando um
bilhete. Já nem aparecia nas inaugurações e andava perdido nas desilusões.(…)
Era
uma cidade infeliz, tinha em ruínas um chafariz, um descuidado tribunal, os
médicos e enfermeiros lá tratavam o que podiam dos doentes no hospital. Na
escola ainda resistiam professores e alunos como se vivessem num mundo
diferente. (…) Como podiam ficar tristes toda a noite e todo o dia?
Inventaram
logo maneira de medir risadas ao centímetro e teriam de ficar sisudos mal
saíssem do perímetro. (…)
As
crianças não percebiam a razão deste mundo oculto. Porque caía nesta tristeza
qualquer sorridente adulto?
Os
anos foram passando na mais profunda escuridão, não havia abraços e beijos,
ninguém abria o coração.
Encerraram
os jardins e museus, cafés e esplanadas, as janelas das casas também ficavam
fechadas.
Um
dia uma menina curiosa, de nome muito formoso, aventurou-se pelas ruas para
perceber comportamento tão misterioso. Não lhe agradou o que viu, muito menos o
que sentiu, ficou logo com vontade de trazer o sol para o seu lado, pois todos
os adultos traziam o rosto muito cerrado.
Andou
de porta em porta e foi espreitando as janelas, famílias inteiras à mesa e
gatos tristes lambendo as tigelas. E num dos pátios da pequena cidade viu uns
miúdos levados da breca, ficava mesmo ao lado da abandonada biblioteca.
Estranhou essa felicidade inteira mesmo junto a um local disponível para tanta
brincadeira. Mas terá isso escapado às leis do presidente da câmara?
Dalila
então pensou que por estar ao abandono local tão aconchegante, ficara então
afastado das lembranças daquela gente.(…)
Pôs-se logo a confirmar, ainda bem que o
edifício não ficava no centro, despertou a curiosidade de abrir a porta e ir
para dentro. Tinha uns cortinados já sujos, até se notava o pó, algumas
fissuras atravessavam as paredes de um lado ao outro. Que pena! Metia dó!
Do
telhado nem palavras, com telhas mesmo muito envelhecidas. Muitas estavam
rachadas, outras, completamente partidas. Chegada bem perto da porta, pôs a mão
na maçaneta. Sentiu um arrepio na pele e sentiu-se poeta. Tanto passado ali
estava, histórias de encantar. Dalila ouviu um ranger, mas começou a sonhar (…)
Abriu
a boca de espanto, deu vários suspiros seguidos. Nem queria acreditar que ali
estivessem tantos livros! (…) Arrumados em prateleiras carregadinhas de teias.
Aranhas para ali e ratos para acolá, numa das mesas pousado um bule para o chá.
(…) Um balcão enumerado até ao três, cartões de requisição com a menção de cada
mês. Algumas cadeiras caídas e outras que estavam de pé, junto a mesas cheias
de histórias, com dragões, dinossauros e bruxas, anões, gigantes e fadas.
A
Dalila tão entusiasmada esqueceu qualquer medo que pudesse ter à entrada. Não
havia fantasmas, nem lobos maus. Imaginou a Capuchinho Vermelho relaxada a
beber cacau. A Bela Adormecida foi beijada por um anão. A Cinderela comeu uma
maçã e não lhe fez comichão. Talvez visse a Alice que talvez ali tivesse
encontrado o seu País das Maravilhas. Esqueceu toda a tristeza, de tal forma
que correu sem demora para a prateleira que estava mais perto. Eram tantos os
livros que não sabia qual escolher ao certo. (…) A Dalila tinha a certeza que a
beleza de um povo estava no seu conhecimento. UM LIVRO É ALIMENTO!
Estava
encantada e fazia planos para esta sua nova morada. Tantas horas que poderia
ali passar. E trazer os amigos para estudar. Bastava uma limpeza geral com um
detergente de letras, muito, mas muito especial. Um espanador de palavras que
as pusesse mais juntas e arejadas. E um pano para lombadas que as tornasse mais
brilhantes. Assim tudo poderia voltar a ser como era dantes. Aquela biblioteca
tão grande já tivera os seus momentos fabulosos. Filas e filas para a
requisição de livros, leitores em todas as cadeiras, capas deitadas nas mesas
apelando à leitura. Crianças que faziam das histórias as suas brincadeiras.
Personagens que estavam bem vivas e felizes para serem lidas.
E
Dalila não demorou a colocar mãos à obra. (…) Cantarolava tão alto que os
meninos no pátio pararam de dar pontapés na bola. Acharam uma curiosidade por
ouvirem a felicidade, coisa que na verdade já andava há muito afastada daquela
cidade. Passou a biblioteca a pente fino, de tal maneira que ficou com um ar
divino. Parecia um céu com nuvens brancas e suaves. (…)
Pegou
num livro grosso, daqueles mais elegantes, embrenhou-se na leitura, numa
atitude de gigante. Como é que foi possível, com tantos livros desanimados, que
aquele local permanecesse abandonado? (…)
Pousou o livro com elegância, como se fosse um ser vivo, depressa ouviu um ai.
Arregalou bastante os olhos à procura de movimento. Mas viu apenas livros e
prateleiras em silêncio.
-
Nada temas, minha amiga. Sou um amigo de jeito, vítima de preconceito – afirmou
a sua companhia.
Ouvir
palavras de um livro. Ouvir um livro a falar.
-
Há muito que aqui estamos na mais completa escuridão, à mercê do pó e dos
ratos. Somos muitos, mas em enorme solidão!
Dalila
pulou da cadeira e desatou a correr pela biblioteca fora, como se o livro fosse
um terrível fantasma.(…) E correu desenfreada entre prateleiras e cadeiras,
quase que escorregava, quando num dos corredores lhe apareceu uma fada.
-
Mas o que é isto? Livros que falam e fadas verdadeiras?! – duvidou a Dalila
assustada. (…)
E
ali estava Dalila naquela biblioteca abandonada carregada de livros que falavam
e de personagens que saltavam para a realidade.
O
que aconteceu depois na cidade?
O
rebuliço terminou quando Dalila percebeu que não havia razão para o susto e
para os livros não era justo. Uma criança não podia fugir dos livros e das suas
personagens.
Sentou-se
no chão muito cansada e logo por dezenas de livros ficou rodeada. Todos
contaram as suas histórias e descreveram as suas memórias. O que antes era medo
passou depois a ser segredo.
Foi
neste ambiente que se ouviu um grande estrondo. (…) Eram palmadas fortes na
porta e vozes muito zangadas. Regressaram os livros para as prateleiras e para
as histórias as fadas. Toda a emoção que estava no ar dissipou-se de par em
par. A alegria de Dalila deu lugar a uma grande tristeza.
Era
o presidente da câmara, mais uma dezena de polícias, todos com aspeto tristonho
e meio atarantados.
-
Quem teve tal atrevimento de abrir as portas ao conhecimento? – questionou o
presidente da câmara envolto em fúria.
Entrou
o presidente, depois entraram os polícias, os professores, os médicos e os
enfermeiros.(…)
-
Fechem as janelas e baixem as cortinas. Tragam de volta os ratos e as aranhas.
Quero isto cheio de pó e escuridão. Não queremos viver de novo tempos de
ilusão! – ordenou o presidente da câmara.
Deu
meia volta e saiu porta fora (…). E nesse preciso instante, uma voz ouviu-se ao
fundo (…). Era o livro mais antigo que não conseguiu cumprir o prometido: o de
nunca se mostrar aos homens…
E
o livro falou da fantasia, do tempo, do sol e da lua, das fadas e das bruxas,
das personagens e dos planetas, dos beijos e dos abraços, da família e dos
amigos, das cores e do mar, do céu e das nuvens, das tardes e das noites, do
mundo e da natureza, das paisagens e das viagens.
Todos
ficaram espantados, saídos de um outro mundo e de sorrisos rasgados.
Sentaram-se todos no chão, puxaram livros à escolha e foram viajando de folha
em folha. Regressaram então as gargalhadas e os abraços. Voltaram para as suas
casas com livros debaixo dos braços, dos mais finos aos calhamaços.
Dalila
passou a ir conversar todos os dias com os seus amigos de papel. Todas as
crianças da cidade passaram a fazer o mesmo.
A
pequena cidade do interior de um país muito pequeno voltou a ter pessoas
sorridentes. A biblioteca estava agora de porta aberta vinte e quatro horas por
dia.
Granja, Carlos Nuno, in A História Engraçada de uma Biblioteca Abandonada. Guimarães: Opera
Omnia, 2016.