Como não poderia deixar
de ser, a biblioteca escolar da Escola Básica e Secundária de Gama Barros
dinamizou a atividade “Leituras de porta em porta” para assinalar o Dia
Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.
Desta vez, trata-se de
um excerto do livro “A Minha Amiga Anne Frank” da autoria de Hannah Pick-Goslar
e relata um momento em que Hannah e Anne Frank se “encontraram” no Campo de
concentração de Bergen Belsen pouco antes de Anne falecer.
Decidimos anexar ao
texto uma pequena “etiqueta” onde se representa a conhecida entrada do Campo de
Concentração de Auschwitz com a sua mensagem “Arbeit Macht Frei” – “O Trabalho
Liberta” e uma pequena tabela com alguns dados relativos ao número de
deportados e de mortos naquele campo.
Acresce referir que, contámos,
uma vez mais, com a colaboração de algumas das nossas alunas monitoras, que distribuíram
este texto aos docentes, assistentes administrativos e assistentes operacionais.
No entanto, ele também será oferecido aos alunos de todas as turmas do 8.º ano
que vão participar na atividade “Visita virtual ao mundo de Anne Frank” que vai
ser dinamizada na Biblioteca Escolar no início do 2.º Semestre.
Esperemos que goste
desta proposta de leitura.
“(…) Um dia, reparei
que a vedação que nos separava do campo de tendas estava cheia de palha. Fiquei
intrigada, mas alguém me disse que era para não nos podermos ver uns aos
outros. Porém, estávamos todos sedentos de informação e as pessoas
arriscavam-se a aproximar-se das vedações, desafiando a ordem direta de não
comunicar com os que estavam noutros campos, num misto de solidariedade e
curiosidade. Estavam sempre a chegar novos transportes que, por vezes, traziam
informações novas.
- Há mulheres neerlandesas entre os
novos transportes – anunciou uma mulher nas nossas camaratas um dia em
fevereiro. – Ouvia-as a falar em neerlandês.
Isto pôs-nos a todos em alvoroço.
Todos queríamos saber se havia familiares ou amigos do outro lado da vedação –
pessoas que tínhamos visto pela última vez em Westerbork ou nas nossas cidades
natais. As mulheres do nosso campo começaram a aproximar-se da vedação cheia de
palha, chamando em neerlandês e trocando informações rápidas. Dali a pouco, uma
mulher que tinha conhecido a minha família em Amesterdão veio à minha procura.
Eu nunca, jamais, teria sonhado com o que ela me contou. Anne Frank
encontrava-se entre as mulheres e raparigas neerlandesas do outro lado da
vedação.
-A Anne está aqui? – perguntei-lhe,
repetindo as suas palavras, mas sem as compreender minimamente naquele momento.
– A Anne está a poucos metros de distância? Aqui? Aqui em Bergen-Belsen?
A minha mente tentou processar esta
informação. Parecia impossível. Anne encontrava-se na Suíça, segura, quente, a
viver numa casa aquecida, a frequentar a escola, sem dúvida a partir o coração
de algum rapaz e a gozar a vida com a família, a avó e os primos. Anne tinha
sido poupada a este tormento. Era o que eu acreditava ser verdade desde o dia
em que fui a casa dela e a encontrei vazia(…) naquele dia quente e
incrivelmente distante de julho de 1942. Estávamos agora em fevereiro de 1945.
Como é que Anne tinha vindo parar aqui? E se ela fazia parte dos que tinham
chegado de transporte, isso significava que tinha estado num campo de
concentração na Polónia. Nada disso fazia sentido para mim.
Mas se Anne se encontrava mesmo a
poucos metros de mim, então como é que eu não haveria de tentar encontrá-la,
mesmo que pudesse ser castigada por isso. Havia tanto para lhe perguntar e tanto
para contar. Estava tão entusiasmada com a possibilidade de a ver que o meu
coração batia com mais força no meu peito. Depois, senti imediatamente o meu
choque transformar-se noutra coisa completamente diferente: uma tristeza
profunda e pesarosa. A minha amiga, a minha animada e inteligente Anne. Se ela
estava aqui não estava livre. Tinha sido uma bênção pensar que ela se
encontrava na Suíça. Ela era realmente a única amiga com quem não tinha de me
preocupar, para além de Jacque em Amesterdão. (…)
Tinha de tentar vê-la. Normalmente,
eu não corria riscos. A minha segurança e a de Gabi eram o mais importante. Mas
como é que eu deixaria de o fazer? Por isso, decidi sair das minhas camaratas
antes do recolher obrigatório das nove horas dessa noite. (…)
O caminho cheio de lama estava
escorregadio e concentrei-me em não cair. Enquanto me aproximava cuidadosamente
da vedação, ainda estava a tentar digerir o facto de poder vir a ver Anne em
breve. Continuava inundada pela descrença; era difícil deixar de lado as minhas
imagens de Anne na Suíça, tão longe da doença e da morte que via aqui.
Eu sabia muito bem que havia torres
de vigia com guardas das SS munidos de metralhadoras e que eles também
patrulhavam, com pastores-alemães à trela, de ambos os lados da vedação. As
vedações rodeavam-nos e dividiam-nos. Não me tinha esquecido de que o castigo
por falar com os prisioneiros do outro lado da vedação podia ser a morte.
Estava a tremer de frio e de medo. Mas também pensava em Anne e os meus pés
continuaram a andar durante os cinco minutos que demorei a lá chegar. (…)
- Olá? Olá? – chamei numa voz suave.
– Está aí alguém?
Uma voz respondeu-me, também em
neerlandês.
- Sim?
Parecia-me familiar.
- O meu nome é Auguste van Pels –
ouvi a mulher dizer.
Sra. Van Pels! Ela e o marido e o
filho Peter iam por vezes visitar a família Frank. Eles viviam na nossa rua e
eu sabia que o marido dela trabalhava com o Sr. Frank.
- É a Hannah. Aqui é a Hannah Goslar
– disse-lhe eu.
Ela respondeu logo:
- Deves querer falar com a Anne. Eu
trago-a. A Margot também está cá. Mas está demasiado doente para vir. (…)
Sentia o meu coração bater de tal
maneira no peito que quase me surpreendi por conseguir ouvir a vozinha calma
que me chamou:
-
Hanneli? Hanneli, és mesmo tu?
-
Sim, sim, Anne, sou eu! – respondi.
Desatámos
logo a chorar, com a mesma chuva fria a cair sobre nós, em lados opostos desta
maldita vedação. Não tínhamos muito tempo, por isso, entre lágrimas, consegui
perguntar:
-
Como é que estás aqui? Porque não estás com a tua avó na Suíça?
Ela
contou-me que não tinham chegado a ir para a Suíça. Aquela história tinha sido
uma farsa. Reparei que a voz dela estava mais fraca, mais débil. Já não era o
chilrear ruidoso e confiante que eu conhecia. (…)
-
Cortaram-me o cabelo – disse ela, com a voz ainda cheia de incredulidade. Senti
o travo da sua indignação. O seu cabelo escuro e sedoso. Estava sempre a
escová-lo, a fazer experiências com rolos; era a sua característica preferida. E
estava gelada, disse-me ela, vestida apenas com trapos. Estremeci só de pensar
nela totalmente exposta ao vento gelado e à chuva que soprava à nossa volta.
Margot estava doente com tifo, demasiado doente para sair da cama, contou-me.
Deu-me a terrível notícia de que os seus pais tinham morrido. De certeza que
morreram gaseados, disse ela.
Mais
palavras que não faziam sentido para mim. Gaseados? O que significava isso? Eu
tinha visto pessoas morrerem de fome e de doença em Bergen-Belsen, e sabíamos
que tentar fugir – ou até mesmo falar uns com os outros desta forma – podia
significar levar um tiro, mas morrer gaseado? (…)
Era
demasiado para compreender. A voz de Anne pertencia a um mundo distante dali, à
nossa praça Merwedeplein, onde passávamos as tardes perdidas no mundo das
brincadeiras e das nossas imaginações, onde nunca passávamos fome e dormíamos
em camas quentes, aconchegadas por pais amorosos. Mas, naquela voz que eu
conhecia tão bem, ela estava a dizer que as pessoas em Auschwitz eram mortas
por gaseamento, incluindo os seus próprios pais. Como era isso possível? (…)
-
Não tenho ninguém. - disse ela, palavras acutilantes para mim.
Agora
estávamos as duas a chorar. Duas raparigas aterrorizadas sob um céu noturno
encharcado de chuva, separadas por esta barreira de palha e arame farpado. Como
é que as coisas tinham chegado a este ponto?
-
Estou a morrer de fome. Tens comida? Podes trazer-me alguma? – perguntou Anne.
-
Sim, vou tentar – respondi, interrogando-me, à medida que as palavras saíam,
como é que conseguiria fazê-lo.
-
Volto daqui a duas noites. Espera por mim – disse eu.
Ela
disse que o faria. Despedimo-nos apressadamente e com tristeza. Olhei em redor,
examinando cuidadosamente a periferia da vedação à procura de guardas, antes de
voltar para as camaratas. Sentia o meu corpo todo a vibrar com a adrenalina de
voltar a encontrar Anne. Mas também tinha o coração apertado. Ela estava tão
abatida, uma sombra da Anne que eu conhecia.
-
Hanneli, graças a Deus que voltaste – disse a Sra. Abrahams, correndo para mim
quando entrei nas camaratas.
-
É a Anne, é mesmo a Anne – disse-lhe a ela e a um pequeno grupo de mulheres que
se juntaram para ouvir mais. – Mas está a tremer de frio, sem nada para vestir
para além da roupa esfarrapada da prisão, e mais esfomeada do que qualquer uma
de nós aqui no Campo Sternlager.
Falei-lhes
mais sobre Anne, dizendo-lhes que era a pessoa mais dinâmica e confiante que eu
conhecia. As minhas amigas das camaratas riram-se quando lhes contei o que a
minha mãe costumava dizer para brincar com ela: «Deus sabe tudo, mas a Anne
sabe ainda mais.» Porém, agora, ela estava tão fragilizada, tão diferente,
expliquei. Reparei na forma como olhavam para mim: com tanta empatia e tristeza
nos olhos. Imaginei que talvez estivessem a pensar nas suas melhores amigas
perdidas no meio desta guerra terrível, perguntando-se onde estariam.
Tinha
de regressar à vedação, a Anne, com alguma comida, expliquei. Mas como é que
iria conseguir levar-lhe alguma coisa?
- Não te preocupes, vamos certificar-nos de que consegues levar-lhe alguma coisa – disse uma mulher.
E depois outras voluntariaram-se para ajudar também. Elas tinham tão pouco para si e nem sequer conheciam Anne. Fiquei impressionada com a sua bondade. Nos dias que se seguiram, passaram pelo meu beliche com as suas ofertas. As mulheres contribuíram com parte do que tinham poupado dos nossos pequenos pacotes da Cruz Vermelha. Aqui, um pão era dividido em pedaços de quatro centímetros, partilhado por várias famílias e tinha de durar dois dias. Mas, mesmo assim, estas mulheres davam o que podiam.”
Pick-Goslar, H.
(2023). A Minha Amiga Anne Frank. Bertrand
Editora.