“FEZ-SE
MULHER. ESTUDOU DIREITO: O seu sonho era ser magistrada. A sua missão era
promover a justiça e construir a igualdade no mundo. Proteger as vítimas e os
inocentes. Restaurar a paz e a concórdia. Estudou muito.
Fez os exames ao CEJ. Entrou.
Esforçou-se. Foi das auditoras mais aplicadas. Assumiu o seu percurso
iniciático com empenho profissional e humildade intelectual. E tomou posse,
finalmente, para poder julgar causas.
E julgou. Com paciência. Sabendo
ouvir. Enfrentando e decidindo, mesmo os casos mais difíceis. Teve os seus dias
de angústia. De dúvidas. De incerteza. Fez sempre o melhor que sabia e podia.
Com sacrifício pessoal e familiar.
O medo de errar não a tolheu de modo algum, mas também não a imunizou
ou empederniu. Era empática e atenta. Calorosa e determinada. Era mesmo,
naquela comarca, e isso pesava-lhe muitíssimo, vista de fora, uma pessoa temida
e, dentro do tribunal, uma das mais respeitadas.
O enorme poder de um magistrado é mesmo terrível. Pode restringir e
limitar brutalmente a liberdade própria ou a de terceiros. Pode afetar irremediavelmente
a honra e a imagem. Quantas vezes decide de forma determinante e irreparável do
destino das partes e do seu património. Quantas vezes conforma – ou, se erra,
deforma mesmo – a verdade. É um poder que mexe
muito com as pessoas. E mexe imenso
com o próprio. Se este for responsável, rigoroso, preocupado e humano, claro.
(…)
Há magistrados que, quando a causa é
própria, acham mesmo que podem ser advogados…
em causa própria. Erram. Enganam-se. E, de certo modo, enganam a justiça.
Aliás, um advogado em causa própria, diz sabiamente o povo, tem sempre um
néscio como cliente. Há magistrados que, arrolados como testemunhas, bloqueiam, hesitam, gaguejam, tal é a pressão e a
responsabilidade a que se sentem sujeitos, pois pesam todas as respostas. (…)
A magistrada deste conto era uma
pessoa tão trabalhadora e tão equilibrada que nunca se queixou, por um lado, da
pendência desumana, da carga excessiva, ou, por outro, alguma
vez assumiu as dores das partes e
nunca quis ser, ainda que por momentos, advogada, nem para suprir a falta de
intervenção de um na sala de audiências. Porque também para um advogado digno
desse nome não basta a presença, não informada, desatenta ou desinteressada.
Exige-se informação, conhecimento, sabedoria e intervenção. Estratégia e coragem.
Bom senso e proatividade.
Era, apesar das suas crenças, porque
também as tinha, uma magistrada sempre isenta e imparcial. Esforçava--se por
ser e também para ser e parecer ser equidistante e ponderada, sóbria e
avisada.(…)
A magistrada deste conto era
igualmente humilde e respeitadora. Um expoente de cidadania ativa e de
exercício sensato do poder judicial. Não era, nunca, arrogante, nem sequer
agreste. Era mesmo um exemplo. Dela, diziam os advogados, era de esperar
inteligência e argúcia, mas sobretudo paciência, urbanidade e humanidade.
Também nunca a magistrada deste
conto pensou ser vítima.
Era uma pessoa forte. A família,
humilde, preparara-a para as dificuldades e obstáculos e ela assumia que era
necessário trabalhar no duro, ter dias menos bons, ter revezes inesperados, ter
dores esperadas, crescer, sofrer e, por vezes, ser, enfim, humana em toda a sua
plenitude e fragilidade.
Um dia, quando menos o esperava,
sentiu quase intuitivamente umas conversas que terminavam abruptamente quando
se aproximava, umas caras que se voltavam estranhas e envergonhadas, quando
pelos corredores passava, até uns risinhos irritantes que se abafavam quando
olhava para certos grupos no seu tribunal. Perguntou.
A resposta foi arrasadora. Nunca
antes alguém tivera a hombridade ou a coragem de a alertar. Ou de fazer algo
para prevenir ou evitar a disseminação brutal dos danos. Que foram depois
ampliados nos jornais e na televisão. E a partir daí a magistrada, ainda o
sendo, deixou de ser só a magistrada. A magistrada era, agora, mais uma vítima.
Não de si mesma, mas de um crime hediondo. De um ato doloso e malévolo de
terceiro desconhecido. Da cobardia e da mesquinhez. Do mal e da inveja. Da
total insensibilidade. Corriam pelas redes sociais fotomontagens da cara da
magistrada em corpos nus que não eram o seu e em poses pornográficas com
terceiros com quem nunca privara e que nunca vira. O fenómeno tornara-se viral.
Sem confinamento. Sem vacina. Sem cura. Sem retrocesso.
Fosse só isso! Tudo o que à sua
volta aconteceu foi cem vezes pior.
Os colegas do tribunal, em vez de a apoiarem, julgavam-na, quando não a criticavam; ora, diziam eles, por se ter exposto assim (e isto porque, pasme-se, era usada uma foto da cara retirada
do seu Facebook) ou por não se ter defendido
assado (porque certamente algo teria feito a magistrada para gerar tal
animosidade), ora porque também eles
podiam ser alvo de algo assim…
Por força do maldizer, do ouvir dizer
e do falatório público, alguns
elementos do Conselho Judiciário voltaram-lhe as costas, ostracizaram-na mesmo
ou, pior, achavam, em conversas de corredor, cochichadas, hipócritas e não
assumidas, que não poderia continuar a exercer a magistratura, tal era, diziam,
a vergonha funcional e, pior, o escândalo público que, pasme-se, também
a eles lhes causara!
«Não me admirou nada que tivesse
acontecido isto; viram as minissaias com que às vezes ia para o tribunal»,
diziam estas e coisas destas outras más-línguas, calcando mais quem já
espezinhada estava.
Sentiu-se então muito só, profundamente
injustiçada, miseravelmente abandonada, ainda mais vitimizada. Mas até parecia
que todos achavam que também era culpada. Ou, pelo menos, pouco cuidadosa ou
avisada.
«Algo teria feito para merecer tudo
aquilo», diziam os que não a conheciam. Mesmo alguns conhecidos, e outros ditos
seus «amigos», gozaram até com a situação e houve mesmo quem, com total falta
de sensibilidade e empatia, andasse a espalhar aquelas imagens ofensivas.
Não
perdeu esses «amigos» porque já não o eram, mas perdeu a pouca confiança e autoestima
que lhe restava.
E a magistrada até se afastou de outros
que eram realmente seus amigos, ou porque estes já não sabiam o que dizer ou o
que fazer, ou porque já não conseguia encarar e falar com ninguém, nem mesmo
com os seus familiares mais próximos. Fechou-se em casa e, dentro de casa, num
casulo de dor. Sofria em silêncio e sem amparo. Sentiu-se cada vez mais
humilhada e injustiçada.
O seu namorado não aguentou a
pressão…e, porventura, também, a sua depressão. Deixou-a. Mais só ficou.
A família falava egoística e
permanentemente na vergonha que lhes caíra em cima - «O que é que nos havia de acontecer…», «És do
Tribunal e nem sequer sabes resolver isto que é contigo e nos põe a todos em
xeque», «O que é que tu nos
fizeste?». Ouviu-os, desculpou-os e ignorou-os até onde pôde, mas depois não
aguentou e isolou-se ainda mais, sofrendo sempre em silêncio. Foi assim que, em
isolamento total, ferida e incompreendida, sem amor nem apoio, entrou em
depressão profunda.
Ninguém a aceitou ou compreendeu.
Ninguém a protegeu. Ninguém realmente a apoiou. Mesmo tendo-se queixado
imediatamente à justiça, logo que alertada. Mas a justiça nada fez para, pelo
menos, tirar aquelas imagens do mundo
virtual que, no fundo, destruiu todo o seu mundo real. Mas, no seu caso, não desistiu de fazer justiça.
Custasse o que lhe custasse.
A alma da magistrada e o espírito de
jurista não a fizeram então parar ou desistir. Mas precisava de ajuda.
Contactou um advogado.
Lutou contra tudo e contra todos os que lhe diziam que «não valia a pena
procurar uma agulha num palheiro», que era impossível conseguir identificar o
autor das colagens e da difusão das imagens pornográficas com a sua cara. O seu
advogado também não descansou enquanto não se chegou à origem do ato criminoso.
Foi o seu único apoio naquele
momento, mas arrepiava-a a sua objetiva frieza, atitude pragmática e
racionalidade exacerbada. Só discutia factos e provas. Possibilidade,
plausibilidade e credibilidade. Ilícitos, culpa, nexo de causalidade e dano.
Não sentimentos. Só o compreendeu verdadeiramente mais tarde. Mais que mecanismo de defesa era uma tentativa de
lhe dar força tentando desviar o foco, retirar carga negativa, minorar o
sofrimento.
A sua queixa tinha sido quase
imediata e automaticamente arquivada por falta de provas. Sem investigação
digna desse nome. Mas houve reabertura do inquérito.
Mais uma vez contra tudo e contra todos, com os requerimentos apresentados, com
o esforço e inteligência do novo titular do inquérito e a atenção e dedicação
policiais finalmente dadas ao caso foi, enfim, possível descobrir, não o autor,
mas sim a autora do crime.
A surpresa foi então terrível.
Fora uma das suas melhores amigas,
quem sabe por despeito, inveja ou vingança, que nunca compreendeu, a manipular
e colocar as imagens adulteradas e coladas primeiramente no Instagram o que
gerou depois uma explosão de visionamentos e de reencaminhamentos para vários
outros sites. A prova foi obtida e
foi a possível, aguentou-se contra todas as investidas para a descredibilizar
ou desvalorizar. O tribunal de primeira instância, depois da defesa, condenou.
E o tribunal superior, depois do recurso, confirmou a condenação. Quase meia
década depois…
A justiça, muito lenta e
particularmente custosa em termos humanos, fez-se onde se tinha que fazer. Mas
não chegou minimamente a tempo.
A mulher cujo sonho era ser
magistrada, já o não é.
Se não desistiu do seu processo,
desistira de exercer a função. Saíra entretanto, com desilusão, amargura, mágoa
e tristeza, da magistratura, do sonho pelo qual tanto lutara.
Se não fosse a tardia decisão
judicial, o advogado que a apoiara e a nobreza da missão que pessoal e
profissionalmente cumprira no pouco tempo em que a abraçara, quase só
encontrara, então, burocracia, inércia, insensibilidade, desinteresse e… os
risinhos fúteis, as caras (re)voltadas, a hipocrisia e um sentimento de
abandono, de hostilidade e de desumanidade que lhe custou mais, muito mais, que
ser vítima do crime.
Enfim, talvez por isso mesmo, deixou
o foro e abandonou o país.
Emigrou para longe, começou uma vida
nova. Voltará um dia mais tarde, certamente, com uma justiça mais atuante,
moderna e humana, porque apesar da sua má experiência sabe que tudo poderá
melhorar se cada um der sempre o seu melhor. Não nos processos, mas com e para
as pessoas com que se interfere no dia a dia.
Com o tempo sararão quase todas as
feridas, deixará certamente de ser vítima,
embora não de ter sido vítima. Mas,
claro, já não voltará a ser magistrada. Voltou a ser simplesmente mulher. Com uma nova vida.
E neste contexto, moral da história,
fez-se justiça, e se a história tem
alguma moral (!), o advogado ganhou o
caso, mas, algures pelo meio do processo ou no fim de tudo, na vida de uma
mulher e na de vários de nós e de outros, perdeu
muito a justiça.”
Abreu, C. P. (2020).Ser mulher. Ser magistrada. Ser vítima. Ser e deixar de ser. In À Roda de Uma Vontade. Trinta Anos da Associação Portuguesa de
Apoio à Vítima. Quetzal Editores e APAV.