O excerto escolhido
para mais um “Leituras de porta em porta” descreve o horror vivido por vários
milhares de prisioneiros ciganos durante a viagem para Auschwitz.
Canção
de Embalar de Auschwitz é um livro inspirado em factos
verídicos e relata a história de uma enfermeira alemã, Helene Hanneman, casada
com um cigano de quem tem quatro filhos. Tudo começa quando as tropas vão a sua
casa para levar o seu marido e os seus filhos para um campo de concentração e
Helene é informada de que poderá não os acompanhar uma vez que é alemã. Apenas
o seu marido e os seus filhos são alvo da detenção por serem ciganos. Helene
acaba por acompanhar voluntariamente a sua família e tudo fará em Auschwitz
para tentar minimizar as condições desumanas neste local de horror, nomeadamente criar uma creche no campo cigano onde, apesar de tudo, conseguirá pequenos
privilégios para os mais pequenos durante algumas horas do dia.
Um relato comovente em
que se entrelaçam a vida de prisioneiros ciganos, judeus e alemães, que lutam
por sobreviver no inferno do maior campo de extermínio da História.
Uma vez mais, os alunos monitores tiveram a seu cargo a tarefa de distribuir o texto pelos diferentes elementos da comunidade escolar. Desta vez competia-lhes, também, a explicação sobre o significado do triângulo castanho que acompanhava o texto. Todos os prisioneiros eram identificados por meio de símbolos. A estrela amarela para os judeus, o triângulo vermelho para os comunistas, o triângulo rosa para os homossexuais, por exemplo. O triângulo castanho era o símbolo dos ciganos nos campos de concentração.
Aqui fica o texto e algumas fotografias do processo de oferta dos textos ao longo do dia.
"A caminho de
Auschwitz, maio de 1943
Tudo aconteceu muito rápido. Na zona de
carga e descarga da estação havia centenas de pessoas coladas à plataforma. Ao princípio
sentimo-nos um pouco aturdidos. Os polícias tinham-nos deixado em frente a uns
soldados das SS e estes, aos empurrões, levaram-nos até ao interior da estação.
Estranhei ver um comboio de gado de cor castanho-escuro com as portas abertas,
mas não demorei a compreender o que aquela gente pretendia. Continuava com
Adalia nos braços, mas agora agarrava com a outra mão as mãozinhas frias e
suadas dos dois gémeos. Os mais velhos estavam agarrados às malas que o meu
marido segurava com força. Os soldados começaram a empurrar-nos e a plataforma
foi-se esvaziando à medida que, com dificuldade, as pessoas entravam nos
vagões. Johann deixou as malas de lado e ajudou Blaz e Otis a subir. Depois
levantou os gémeos e colocou-os dentro do vagão. Nesse momento, a pressão das
pessoas começou a arrastar-me para diante. Johann tinha subido para dentro do
vagão para que lhe passasse a menina, mas mal conseguia manter-me em frente à
porta. O meu marido pegou em Adalia, mas eu estava cada vez mais longe deles.
Angustiada, abri passagem aos empurrões. Mulheres, homens e crianças como uma
maré humana aterrorizada arrastavam-me para os outros vagões, mas não podia
deixar a minha família sozinha. Agarrei-me com todas as minhas forças a uma
barra do vagão e dei um salto, fiquei suspensa por uns segundos por cima das
cabeças da multidão, mas depressa senti uma forte pancada nas costas. Virei-me
e vi um soldado das SS com um bastão que tentava fazer-me descer daquele lugar.
O meu marido observou a cena, agarrou-se às madeiras do vagão e aproximou-se de
mim estendendo o braço. Olhei-o por uns instantes, senti uma segunda pancada
que quase me fez cair entre a multidão, mas consegui agarrar a mão de Johann e
ele conseguiu puxar-me para dentro do vagão.
O cheiro nauseabundo quase me fez
vomitar, mas recompus-me e, com a ajuda do meu marido, conseguimos arranjar um
lugar para que as crianças se pudessem sentar sobre a palha com um pestilento
fedor a humidade e ferrugem. Johann e eu tivemos de ficar de pé, com noventa e
seis pessoas no vagão era impossível que todos nos pudéssemos sentar.
O comboio começou a mover-se
lentamente e estivemos prestes a perder o equilíbrio, mas os corpos amontoados
impediam-nos de cair ao chão. Aquele inferno estava prestes a começar.
Todos os ocupantes do vagão eram
zíngaros como o meu marido. Ao princípio as pessoas tentaram levar as coisas
com calma, mas à medida que as horas passavam surgiram as discussões e os
confrontos. A sede começou a ser um problema a partir de quatro ou cinco horas
de viagem. Os bebés gritavam desesperados, as crianças tinham fome e os idosos
começavam a cair desmaiados pelo esgotamento e a postura incómoda. O vagão não
parava de solavancar e saltar. Sentíamos muito frio apesar de estarmos no
início de maio; os fins de tarde eram gélidos na Alemanha e dirigíamo-nos mais
para norte.
Quando chegou a noite, a gritaria
apoderara-se do vagão, até que um dos idosos ciganos começou a gritar na sua
língua ancestral. O idoso conseguiu que os ânimos se acalmassem um pouco. O meu
marido com alguns homens ajudou a organizar o vagão e a improvisar uma espécie
de retrete ao fundo, com um balde e uma manta que estava pendurada no teto,
para pelo menos haver um pouco de privacidade.
Aproveitei para dar aos meus filhos
um pouco de comida e beberam uns goles de leite por turnos. Os dois mais velhos
deitaram-se sobre a palha e os três mais pequenos aninharam-se aos seus pés e a
menina entre eles.
Não havia luz, mas também não era
necessário para imaginar os rostos preocupados e as expressões de extrema
tristeza de todos os viajantes. As condições em que nos transportavam não nos
permitiam ter muitas ilusões de como seria o lugar para onde nos dirigíamos.
Quando Johann regressou não pude resistir mais e comecei a chorar. Tentei
afagar os meus lamentos no seu casaco, para que as crianças não acordassem. Mas
aquilo não me consolava e mesmo quando ia desafogando os meus soluços sentia-me
cada vez mais desesperada.
- Não chores, querida. Certamente
que as coisas irão melhorar quando chegarmos ao acampamento. Em 1936 muitos
ciganos foram internados para a celebração dos Jogos Olímpicos e passados
poucos meses deixaram-nos regressar a casa – disse Johann com um tom suave. (…)
- Os roma somos perseguidos há centenas de anos e sempre sobrevivemos,
também conseguiremos sair desta – disse Johann acariciando-me a face. (…)
Na manhã seguinte parámos algumas
horas em Pruszców. Foi a confirmação de que nos encontrávamos na Polónia. A
sede começava a deixar-nos desesperados, o cheiro a vómito, urina e sedimentos
invadia tudo, convertendo o ar numa coisa quase irrespirável. Então um rumor
correu por todo o vagão, um soldado das SS tinha aparecido pela única janela
que havia no vagão. As pessoas suplicavam-lhe por água e um pouco de comida.
- Deem-me tudo o que tiverem de
valor! – gritou com uma luger na mão.
O meu marido ajudou os viajantes
arrecadando relógios de pulso, anéis e outras joias para que aquele tipo nos
desse um pouco de água fresca. Um balde de água para quase cem pessoas era
muito pouca quantidade. Dava apenas um pequeno sorvo a cada um de nós. As
pessoas gemiam desesperadas pela água, perdendo os últimos bons modos que ainda
tinham tentado manter. Quando chegou a nossa vez, primeiro bebeu Adalia, apenas
uns sorvos, depois os gémeos e por último Otis. O mais velho observou-me com os
lábios ressequidos pela sede. Depois passou-me o balde sem provar a água. Blaz
compreendia que havia doentes e bebés que necessitavam mais do que ele. Aquilo
quase que fez com que me saltassem as lágrimas. Sentia-me muito orgulhosa pela
sua coragem: era capaz de suportar a sua sede para que outros pudessem saciar a
deles.
Durante a tarde do segundo dia
várias crianças tinham febre alta e alguns dos idosos pareciam realmente
doentes. Estávamos quase há um dia e meio sem beber água e sem comer, além
disso mal tínhamos dormido.
A segunda noite foi ainda mais
terrível do que a primeira. Um idoso chamado Roth sofreu um ataque de coração e
caiu mesmo ao nosso lado. Não pudemos fazer nada para o reanimar, as crianças
começaram a ficar assustadas, mas conseguimos que adormecessem de novo.(…)
Aproximei-me das tábuas de madeira
da parede e tentei olhar por uma das frestas. Pude contemplar uma grande
estação com uma espécie de torre central. O comboio deteve-se uns minutos e as
pessoas começaram a mover-se. Pusemo-nos de novo em marcha e entrámos por uma
espécie de pequeno arco. Do outro lado, uma longa cerca com puas, segura por
dezenas de postes de cimento, ladeava as vias. Uns potentes holofotes
iluminavam o acampamento por completo. Aquele lugar parecia-nos imenso e rude,
mas pelo menos era um lugar onde viver e onde se podia escapar daquele comboio
infernal.
As pessoas inquietaram-se ao ver que
estávamos parados, mas durante quase quatro horas ninguém se aproximou do nosso
comboio e, levados pelo esgotamento, todos se foram aninhando uns em cima dos
outros, tentando estar o mais afastados possível dos cadáveres e dormir um
pouco. (…)
Enquanto a minha família dormia
intranquila, quase nas fronteiras da agonia, comecei a chorar em silêncio.
Sentia-me culpada por não ter previsto que a loucura dos nazis acabaria por nos
alcançar, devíamos ter fugido para Espanha ou para a América, para nos
afastarmos o máximo possível da terrível loucura que se apoderara do nosso país
e de quase todo a Europa. Sempre quis acreditar que no final as pessoas se
dariam conta do que Hitler e os seus sequazes representavam, mas não foi assim.
Todos os seguiram na sua loucura fanática e converteram o mundo num inferno de
guerra e fome.
Quando o dia decidiu aparecer no
horizonte ouvimos latidos e passos sobre o cascalho que rodeava as vias. Meia
centena de soldados, um oficial das SS e um intérprete que repetia as suas
ordens em várias línguas despertaram todo o comboio.
As pessoas encontravam-se desejosas
de abandonar o nosso inferno particular, sem estarem ainda conscientes de que
entravam noutro ainda pior.
- Quietos – disse às crianças. Elas
olharam-me tranquilas. Estavam muito cansadas, embora sentissem curiosidade
pelo que as esperava lá fora.
Depois do vagão se esvaziar, o meu
marido pegou nas malas e antes de descer olhámos para ambos os lados. Uma
grande multidão descia rapidamente dos comboios. Em baixo, os soldados das SS e
uns prisioneiros vestidos com uniformes às riscas pediam cordialmente que nos
colocássemos em filas separadas.
- Desçam, rápido! – gritou-nos um
dos soldados.
O meu marido deu um salto e depois
ajudou-nos a descer a todos. Sentia as pernas débeis e uma sensação
desagradável nos ossos, como se o frio daquele lugar penetrasse até ao mais
profundo do meu ser. Os soldados das SS tinham cães e levavam bastões nas mãos,
mas nenhum parecia com intenção de os usar. Uns metros mais adiante viam-se
torres de vigilância, e ao fundo umas grandes chaminés, mas a multidão apenas
nos permitia contemplar o que se encontrava mais perto.
Dividiram-nos em dois grandes
grupos. Puseram as mulheres e as crianças para um lado e colocaram todos os
homens para outro. Ao princípio tentei resistir à separação de Johann, agarrei
a sua mão até que um dos prisioneiros se aproximou e com voz suave disse-me:
- Vê-lo-á mais tarde. Não se
preocupe, senhora.
O meu marido passou-me as malas e
ficou na outra fila. Olhava-nos e tentou sorrir para nos tranquilizar, mas os
seus lábios franzidos pretendiam dissimular uma angústia quase insuportável.
- Para onde levam o papá? –
perguntou Emily, enquanto esfregava os seus olhos irritados.
Não soube o que responder. Ficara
sem palavras, a dor deixara-me muda, como se a minha mente já não pudesse
suportar aquela situação sem sentido. Limitei-me a acariciar a sua cabeça e
baixar a vista para que não desse conta das minhas lágrimas.
- Os homens dos vinte aos quarenta
anos virão connosco – disse um dos oficiais das SS.
O grupo dividiu-se em dois e
contemplei como Johann se afastava. Ao estar entre os primeiros apenas pude
observar durante uns segundos as suas costas largas, com o cabelo preto e
encaracolado metido em parte pelo colarinho da sua camisa. O meu marido tinha
ocupado toda a minha existência durante quase quinze anos. Senti-me como se me
arrancassem as entranhas quando se puseram a andar. A vida não merecia a pena
ser vivida sem ele. Depois olhei para os meus filhos. Observavam-me com os seus
olhos muito abertos, como se tentassem esquadrinhar a minha alma. Então soube
que ser mãe era muito mais do que criar os filhos, consistia em dobrar a alma
até que o eu se confundisse para
sempre com os seus belos rostos inocentes. O grupo de homens já estava a certa
distância enquanto mordia os lábios para não chorar. Johann caminhava dentro da
formação, ocultando-me o seu rosto. Pedi ao céu para o ver pela última vez. Os
soldados empurravam-nos e apressavam-nos, mas pelo menos Johann, por um
instante, atreveu-se a virar-se e os seus olhos despediram-se de mim, tentando
suprir com aquelas bonitas pupilas a falta das suas palavras."
Escobar, Mario, in Canção de Embalar de Auschwitz. Madrid:
HarperCollins, 2016.