Foi com muita alegria
que os alunos monitores da BE/CRE voltaram a dinamizar mais um “Leituras de
Porta em Porta”. O Dia 23 de abril, Dia Mundial do Livro, foi o pretexto para
mais uma atividade de promoção da leitura junto da comunidade escolar.
Desta vez, o texto
escolhido é, curiosamente, um excerto do livro mais lido em Espanha durante o
confinamento – “O Infinito num Junco” - da escritora Espanhola Irene Vallejo.
Trata-se de um livro sobre a história dos livros – um relato sobre o seu
nascimento, a sua evolução e as suas muitas formas ao longo de vários séculos.
Uma longa viagem pelos “livros” de pedra, de argila, de papiro, de pele…até aos
recentes livros de plástico e de luz.
Não perca este livro fabuloso!
Para lhe aguçar o apetite leia o excerto que oferecemos a professores, alunos,
assistentes operacionais e administrativos na passada sexta-feira.
23
de abril - Dia Mundial do Livro
A pele dos livros
“Antes da invenção da
imprensa, cada livro era único. Para que existisse um novo exemplar, alguém
devia reproduzi-lo letra a letra, palavra por palavra, num exercício paciente e
esgotante. Havia poucas cópias da maioria das obras, e a possibilidade de que
um determinado texto se extinguisse totalmente era uma ameaça muito real. Na
Antiguidade, em qualquer momento, o último exemplar de um livro podia estar a
desaparecer numa prateleira, devorado pelas térmitas ou destruído pela
humidade. E, enquanto a água ou as mandíbulas do inseto atuavam, uma voz era
silenciada para sempre.
Na verdade, essa
pequena obra de destruição aconteceu muitas vezes. Naquele tempo, os livros
eram frágeis. Todos tinham, à partida, mais probabilidades de desaparecerem do
que de permanecerem. A sua sobrevivência dependia do acaso, dos acidentes, do
apreço que os seus proprietários sentiam por eles e, muito mais do que hoje, da
sua matéria-prima. Eram objetos indeléveis, fabricados com materiais que se
deterioravam, se partiam ou se desagregavam. A invenção do livro é a história
de uma batalha contra o tempo para melhorar os aspetos tangíveis e práticos – a
duração, o preço, a resistência, a leveza – do suporte físico dos textos. Cada
avanço, por mais ínfimo que pudesse parecer, aumentava a esperança de vida das
palavras.
A pedra é duradoura,
claro. Os antigos gravaram as suas frases nela, tal como nós continuamos a
fazer nessas placas, lápides, blocos e pedestais que habitam nas nossas
cidades. Mas um livro só pode ser de pedra metaforicamente. A Pedra de Roseta,
com os seus quase oitocentos quilos de peso, é um monumento e não um objeto. O
livro deve ser portátil, deve favorecer a intimidade de quem escreve e lê, deve
acompanhar os leitores e caber na sua bagagem.
O antepassado mais
próximo dos livros foram as tabuinhas. Já falei das tabuinhas de argila da
Mesopotâmia, que se estenderam pelos atuais territórios da Síria, Iraque,
Jordânia, Líbano, Israel, Turquia, Creta e Grécia, e em algumas zonas
continuaram a usar-se até ao início da era cristã. As tabuinhas endureciam-se
como os adobes, secando-as ao sol. Molhando a superfície, era possível apagar
os traços e escrever de novo. Quase nunca se coziam em fornos, como os tijolos,
porque então a argila ficava inutilizada para se poder usar de novo.
Guardavam-se, ao abrigo da humidade, empilhadas em estantes de madeira e também
em cestas de vime e jarras. Eram baratas e leves, mas partiam-se
facilmente.
Hoje conservam-se
tabuinhas do tamanho de um cartão ou de um telemóvel e toda uma gama de tamanho
crescente até aos exemplares de 30 e 35 centímetros. Mesmo que se escrevesse
pelos dois lados, os textos extensos não cabiam. Este era um grave
inconveniente: quando uma só obra ficava distribuída em várias peças, havia
muitas possibilidades que se perdessem tabuinhas e, com elas, parte do relato.(…)
As tabuinhas
retangulares foram uma descoberta formal. O retângulo provoca um estranho
prazer ao nosso olhar. Delimita um espaço equilibrado, concreto, abrangível. A
maior parte das janelas, das montras, dos ecrãs, das fotografias e dos quadros
são retangulares. Os livros, depois de sucessivas pesquisas e ensaios, também
acabaram por ser definitivamente retangulares.
O rolo de papiro
implicou um fantástico avanço na história do livro. Os judeus, gregos e romanos
adotaram-no com tanto entusiasmo que chegaram a considerá-lo um traço cultural
próprio. Em comparação com as tabuinhas, as folhas de papiro são um material
fino, leve e flexível e, quando se enrolam, fica armazenada uma grande
quantidade de texto em muito pouco espaço. Um rolo de dimensões habituais podia
conter uma tragédia grega completa, um diálogo breve de Platão ou um evangelho.
Isso representava um prodigioso avanço no que se refere ao esforço para
conservar as obras do pensamento e da imaginação. Os rolos de papiro relegaram
as tabuinhas para um uso secundário (…).
Contudo, os papiros
tinham inconvenientes. No clima seco do Egito, mantinham a sua flexibilidade e
brancura, mas a humidade da Europa enegrecia-os, tornando-os frágeis. Se as
folhas de papiro se humedecem e secam várias vezes, desfazem-se. Durante a
Antiguidade, os rolos mais valiosos guardavam-se protegidos em jarras, em
caixas de madeira ou em sacos de pele. Para além disso, só se aproveitava um
lado do rolo, a parte em que as fibras vegetais eram horizontais, paralelas às
linhas de escrita. No outro lado, os filamentos verticais estorvavam o avanço
do cálamo. A face escrita ficava no interior do rolo, para protegê-la da luz e
do atrito.
Os livros de papiro –
leves, belos e transportáveis – eram objetos delicados. A leitura e o uso
habitual consumiam-nos. O frio e a chuva destruíam-nos. Como eram matéria
vegetal, despertavam a glutonaria dos insetos, e ardiam facilmente.
Como já disse, os rolos
só se fabricavam no Egito. Eram produtos de importação sustentados por uma
impressionante estrutura comercial que continuou viva, mesmo sob o domínio
muçulmano, até ao século XII. Os faraós e reis egípcios, senhores do monopólio,
decidiam o preço das oito variedades de papiro que circulavam no mercado. E, de
forma parecida aos países exportadores de petróleo, os soberanos egípcios
aplicavam à sua vontade medidas de pressão ou sabotagem.
E foi isso que
aconteceu com inesperadas consequências para a história do livro. No início do
século II a.C., o rei Ptolomeu V, corroído pela inveja, procurava a forma de
prejudicar uma biblioteca rival fundada na cidade de Pérgamo, na atual Turquia.
Tinha sido criada por um rei helenístico de cultura grega, Eumenes II,
reproduzindo um século mais tarde a avidez e os métodos pouco escrupulosos dos
primeiros Ptolomeus no momento de conseguirem livros. Também se lançou à caça
de génios intelectuais e atraiu um grupo de sábios que formavam uma comunidade
paralela à do Museu. Desde a sua capital, Eumenes tentava eclipsar o brilho
cultural de Alexandria num momento em que o poder político egípcio estava em
declínio. Ptolomeu, consciente de que os melhores tempos tinham ficado para
trás, enfureceu-se perante o desafio. Não estava disposto a suportar afrontas
contra a Grande Biblioteca, que simbolizava o orgulho da sua linhagem. Conta-se
que mandou prender o bibliotecário Aristófanes de Bizâncio quando descobriu que
este planeava instalar-se em Pérgamo sob a proteção do rei Eumenes, acusando um
de traição e o outro de roubo.
Para além de mandar
prender Aristófanes de Bizâncio, o contra-ataque de Ptolomeu a Eumenes foi
visceral. Interrompeu o fornecimento de papiro ao reino de Eumenes, para vergar
a biblioteca inimiga privando-a do melhor material de escrita existente. A
medida poderia ter sido demolidora, mas – para frustração do vingativo rei – o
embargo impulsionou um grande avanço que, para além do mais, imortalizaria o
nome do inimigo. Em Pérgamo reagiram aperfeiçoando a antiga técnica oriental de
escrever sobre couro, uma prática cujo uso tinha sido secundário e local até
então. Em memória da cidade que o universalizou, o produto melhorado chamou-se
«pergaminho». Cerca de quatro séculos mais tarde, essa descoberta mudaria a
fisionomia e o futuro dos livros. O pergaminho fabricava-se com peles de
bezerro, ovelha, carneiro ou cabra. Os artesãos mergulhavam-nas num banho de
cal durante várias semanas antes de secá-las esticadas num bastidor de madeira.
O facto de estarem esticadas alinhava as fibras da pele, formando uma
superfície lisa, que depois raspavam para mais tarde alcançarem a brancura, a
beleza e a grossura desejadas. O resultado desse longo processo de elaboração
eram lâminas suaves, finas, que se aproveitavam nas duas faces para a escrita
e, sobretudo – esse é o segredo -, duradouras.
O escritor italiano
Vasco Pratolini disse que a literatura consiste em fazer exercícios de
caligrafia sobre a pele. Embora não pensasse no pergaminho, a imagem é
perfeita. Quando o novo material de escrita triunfou, os livros
transformaram-se precisamente nisso: corpos habitados por palavras, pensamentos
tatuados na pele.”
Vallejo, I.
(2020). O Infinito Num Junco. Lisboa:
Bertrand Editora.