domingo, 25 de abril de 2021

No Dia Mundial do Livro voltamos às Leituras de Porta em Porta em regime presencial











Foi com muita alegria que os alunos monitores da BE/CRE voltaram a dinamizar mais um “Leituras de Porta em Porta”. O Dia 23 de abril, Dia Mundial do Livro, foi o pretexto para mais uma atividade de promoção da leitura junto da comunidade escolar.

Desta vez, o texto escolhido é, curiosamente, um excerto do livro mais lido em Espanha durante o confinamento – “O Infinito num Junco” - da escritora Espanhola Irene Vallejo. Trata-se de um livro sobre a história dos livros – um relato sobre o seu nascimento, a sua evolução e as suas muitas formas ao longo de vários séculos. Uma longa viagem pelos “livros” de pedra, de argila, de papiro, de pele…até aos recentes livros de plástico e de luz.

Não perca este livro fabuloso! Para lhe aguçar o apetite leia o excerto que oferecemos a professores, alunos, assistentes operacionais e administrativos na passada sexta-feira.


23 de abril - Dia Mundial do Livro

 A pele dos livros

“Antes da invenção da imprensa, cada livro era único. Para que existisse um novo exemplar, alguém devia reproduzi-lo letra a letra, palavra por palavra, num exercício paciente e esgotante. Havia poucas cópias da maioria das obras, e a possibilidade de que um determinado texto se extinguisse totalmente era uma ameaça muito real. Na Antiguidade, em qualquer momento, o último exemplar de um livro podia estar a desaparecer numa prateleira, devorado pelas térmitas ou destruído pela humidade. E, enquanto a água ou as mandíbulas do inseto atuavam, uma voz era silenciada para sempre.

Na verdade, essa pequena obra de destruição aconteceu muitas vezes. Naquele tempo, os livros eram frágeis. Todos tinham, à partida, mais probabilidades de desaparecerem do que de permanecerem. A sua sobrevivência dependia do acaso, dos acidentes, do apreço que os seus proprietários sentiam por eles e, muito mais do que hoje, da sua matéria-prima. Eram objetos indeléveis, fabricados com materiais que se deterioravam, se partiam ou se desagregavam. A invenção do livro é a história de uma batalha contra o tempo para melhorar os aspetos tangíveis e práticos – a duração, o preço, a resistência, a leveza – do suporte físico dos textos. Cada avanço, por mais ínfimo que pudesse parecer, aumentava a esperança de vida das palavras.

A pedra é duradoura, claro. Os antigos gravaram as suas frases nela, tal como nós continuamos a fazer nessas placas, lápides, blocos e pedestais que habitam nas nossas cidades. Mas um livro só pode ser de pedra metaforicamente. A Pedra de Roseta, com os seus quase oitocentos quilos de peso, é um monumento e não um objeto. O livro deve ser portátil, deve favorecer a intimidade de quem escreve e lê, deve acompanhar os leitores e caber na sua bagagem.

O antepassado mais próximo dos livros foram as tabuinhas. Já falei das tabuinhas de argila da Mesopotâmia, que se estenderam pelos atuais territórios da Síria, Iraque, Jordânia, Líbano, Israel, Turquia, Creta e Grécia, e em algumas zonas continuaram a usar-se até ao início da era cristã. As tabuinhas endureciam-se como os adobes, secando-as ao sol. Molhando a superfície, era possível apagar os traços e escrever de novo. Quase nunca se coziam em fornos, como os tijolos, porque então a argila ficava inutilizada para se poder usar de novo. Guardavam-se, ao abrigo da humidade, empilhadas em estantes de madeira e também em cestas de vime e jarras. Eram baratas e leves, mas partiam-se facilmente. 

Hoje conservam-se tabuinhas do tamanho de um cartão ou de um telemóvel e toda uma gama de tamanho crescente até aos exemplares de 30 e 35 centímetros. Mesmo que se escrevesse pelos dois lados, os textos extensos não cabiam. Este era um grave inconveniente: quando uma só obra ficava distribuída em várias peças, havia muitas possibilidades que se perdessem tabuinhas e, com elas, parte do relato.(…)

As tabuinhas retangulares foram uma descoberta formal. O retângulo provoca um estranho prazer ao nosso olhar. Delimita um espaço equilibrado, concreto, abrangível. A maior parte das janelas, das montras, dos ecrãs, das fotografias e dos quadros são retangulares. Os livros, depois de sucessivas pesquisas e ensaios, também acabaram por ser definitivamente retangulares.

O rolo de papiro implicou um fantástico avanço na história do livro. Os judeus, gregos e romanos adotaram-no com tanto entusiasmo que chegaram a considerá-lo um traço cultural próprio. Em comparação com as tabuinhas, as folhas de papiro são um material fino, leve e flexível e, quando se enrolam, fica armazenada uma grande quantidade de texto em muito pouco espaço. Um rolo de dimensões habituais podia conter uma tragédia grega completa, um diálogo breve de Platão ou um evangelho. Isso representava um prodigioso avanço no que se refere ao esforço para conservar as obras do pensamento e da imaginação. Os rolos de papiro relegaram as tabuinhas para um uso secundário (…).

Contudo, os papiros tinham inconvenientes. No clima seco do Egito, mantinham a sua flexibilidade e brancura, mas a humidade da Europa enegrecia-os, tornando-os frágeis. Se as folhas de papiro se humedecem e secam várias vezes, desfazem-se. Durante a Antiguidade, os rolos mais valiosos guardavam-se protegidos em jarras, em caixas de madeira ou em sacos de pele. Para além disso, só se aproveitava um lado do rolo, a parte em que as fibras vegetais eram horizontais, paralelas às linhas de escrita. No outro lado, os filamentos verticais estorvavam o avanço do cálamo. A face escrita ficava no interior do rolo, para protegê-la da luz e do atrito.

Os livros de papiro – leves, belos e transportáveis – eram objetos delicados. A leitura e o uso habitual consumiam-nos. O frio e a chuva destruíam-nos. Como eram matéria vegetal, despertavam a glutonaria dos insetos, e ardiam facilmente.

Como já disse, os rolos só se fabricavam no Egito. Eram produtos de importação sustentados por uma impressionante estrutura comercial que continuou viva, mesmo sob o domínio muçulmano, até ao século XII. Os faraós e reis egípcios, senhores do monopólio, decidiam o preço das oito variedades de papiro que circulavam no mercado. E, de forma parecida aos países exportadores de petróleo, os soberanos egípcios aplicavam à sua vontade medidas de pressão ou sabotagem.

E foi isso que aconteceu com inesperadas consequências para a história do livro. No início do século II a.C., o rei Ptolomeu V, corroído pela inveja, procurava a forma de prejudicar uma biblioteca rival fundada na cidade de Pérgamo, na atual Turquia. Tinha sido criada por um rei helenístico de cultura grega, Eumenes II, reproduzindo um século mais tarde a avidez e os métodos pouco escrupulosos dos primeiros Ptolomeus no momento de conseguirem livros. Também se lançou à caça de génios intelectuais e atraiu um grupo de sábios que formavam uma comunidade paralela à do Museu. Desde a sua capital, Eumenes tentava eclipsar o brilho cultural de Alexandria num momento em que o poder político egípcio estava em declínio. Ptolomeu, consciente de que os melhores tempos tinham ficado para trás, enfureceu-se perante o desafio. Não estava disposto a suportar afrontas contra a Grande Biblioteca, que simbolizava o orgulho da sua linhagem. Conta-se que mandou prender o bibliotecário Aristófanes de Bizâncio quando descobriu que este planeava instalar-se em Pérgamo sob a proteção do rei Eumenes, acusando um de traição e o outro de roubo.

Para além de mandar prender Aristófanes de Bizâncio, o contra-ataque de Ptolomeu a Eumenes foi visceral. Interrompeu o fornecimento de papiro ao reino de Eumenes, para vergar a biblioteca inimiga privando-a do melhor material de escrita existente. A medida poderia ter sido demolidora, mas – para frustração do vingativo rei – o embargo impulsionou um grande avanço que, para além do mais, imortalizaria o nome do inimigo. Em Pérgamo reagiram aperfeiçoando a antiga técnica oriental de escrever sobre couro, uma prática cujo uso tinha sido secundário e local até então. Em memória da cidade que o universalizou, o produto melhorado chamou-se «pergaminho». Cerca de quatro séculos mais tarde, essa descoberta mudaria a fisionomia e o futuro dos livros. O pergaminho fabricava-se com peles de bezerro, ovelha, carneiro ou cabra. Os artesãos mergulhavam-nas num banho de cal durante várias semanas antes de secá-las esticadas num bastidor de madeira. O facto de estarem esticadas alinhava as fibras da pele, formando uma superfície lisa, que depois raspavam para mais tarde alcançarem a brancura, a beleza e a grossura desejadas. O resultado desse longo processo de elaboração eram lâminas suaves, finas, que se aproveitavam nas duas faces para a escrita e, sobretudo – esse é o segredo -, duradouras.

O escritor italiano Vasco Pratolini disse que a literatura consiste em fazer exercícios de caligrafia sobre a pele. Embora não pensasse no pergaminho, a imagem é perfeita. Quando o novo material de escrita triunfou, os livros transformaram-se precisamente nisso: corpos habitados por palavras, pensamentos tatuados na pele.”

Vallejo, I. (2020). O Infinito Num Junco. Lisboa: Bertrand Editora.


Sem comentários:

Enviar um comentário