Um
excerto do livro “O Infinito Num Junco” da escritora espanhola Irene Vallejo
foi o escolhido pela professora bibliotecária para mais um “Leituras de Porta
em Porta”, desta vez dinamizado na Semana da Leitura. Por isso mesmo,
impunha-se falar de leitura e sobre a leitura, nomeadamente sobre a forma como
se lia na Antiguidade Clássica e sobre a forma como se lê na atualidade, assim
como pensar um pouco sobre a dinâmica e sobre a importância das bibliotecas de
outrora e as atuais.
Como
sempre, esta iniciativa contou com a colaboração de alguns dos alunos monitores
da Biblioteca Escolar que, entusiasticamente, fizeram chegar “rolinhos” a todos
os que trabalham diariamente na escola - docentes e assistentes operacionais e
administrativos.
Aqui
fica o interessante excerto mas, honestamente, não se fique por tão pouco.
Aproveite a pausa da Páscoa, passe por uma livraria, e delicie-se com o texto
integral desta obra.
“Ler
é um ritual que implica gestos, posições, objetos, espaços, materiais, movimentos,
modulações de luz. Para imaginarmos como liam os nossos antepassados,
precisamos de conhecer, em cada época, essa rede de circunstâncias que rodeiam
o íntimo cerimonial de entrar num livro.
O manuseamento de um rolo não é nada
parecido com o de um livro de páginas. Ao abrir um rolo, os olhos deparavam-se
com uma fila de colunas de texto, uma atrás de outra, da esquerda para a
direita, na parte interior do papiro. À medida que avançava, o leitor ia
desenrolando o mesmo com a mão direita para aceder ao novo texto, enquanto com
a esquerda enrolava as colunas já lidas. Um movimento pausado, rítmico,
interiorizado; um baile lento. Quando acabavam de lê-lo, o livro ficava
enrolado ao contrário, do final para o início, e a cortesia exigia rebobiná-lo
– como as cassetes – para o próximo leitor. A cerâmica, as esculturas e os
relevos representam homens e mulheres, presos pela leitura a reproduzirem esses
gestos. Estão de pé, ou sentados com o livro no colo. Têm as duas mãos
ocupadas; não podem desenrolar o rolo apenas com uma. As suas posições,
atitudes e gestos são diferentes dos nossos e ao mesmo tempo são-nos familiares;
as costas encurvam-se ligeiramente, o corpo encolhe-se sobre as palavras, o
leitor ausenta-se do seu mundo por um momento e empreende uma viagem,
transportado pelo movimento lateral das suas pupilas.
A Biblioteca de Alexandria acolheu
muitos daqueles viajantes imóveis, mas não sabemos bem que enquadramento e que
lugares oferecia para a leitura. Há apenas descrições, e as que temos são estranhamente
vagas. Só podemos conjeturar o que escondem esses silêncios. A informação mais
decisiva vem de um autor nascido na atual Turquia, Estrabão, que chegou a
Alexandria desde Roma no ano 24 a.C. para trabalhar num grande tratado
geográfico com o qual queria complementar as suas investigações sobre história.
Na crónica da sua passagem pela cidade – onde conheceu o Farol, o grande dique,
o porto, as ruas ortogonais, os bairros, o lago Mareótis e os canais do Nilo -,
diz que o Museu faz parte do enorme palácio real. Com a passagem dos séculos, o
palácio tinha-se ido ampliando já que cada rei lhe tinha acrescentado novas
dependências e edifícios, até que o conjunto chegou a ocupar, segundo Estrabão,
um terço da cidade. Nessa extensa fortaleza proibida, à qual poucos tinham
acesso, Estrabão contemplou um atarefado microcosmos. Depois de percorrê-lo com
um olhar atento, redigiu uma descrição do Museu e do mausoléu de Alexandre, sem
dedicar uma única palavra à Biblioteca. (…)
Onde estava a Biblioteca? Talvez a
tenhamos procurado em vão e, embora esteja diante dos nossos olhos, não a vemos
porque não é parecida com as nossas expectativas. Alguns especialistas supõem
que Estrabão não menciona a Biblioteca, onde sem dúvida trabalhou, porque não
era um edifício independente. Talvez fosse um conjunto de nichos abertos nos
muros da grande galeria do museu. Ali, empilhados em prateleiras,
encontrar-se-iam os rolos, ao alcance dos investigadores. Em divisões anexas
armazenar-se-iam documentos e livros de utilização menos frequente, mas mais
valiosos e raros.
É a hipótese mais verosímil sobre as
bibliotecas gregas, que não eram salas, mas sim estantes. Não dispunham de
instalações para os leitores, que tinham que trabalhar num pórtico contíguo,
ensolarado e protegido das inclemências, muito parecido ao claustro de um
mosteiro. Se tudo acontecesse como imaginamos, aqueles leitores do Museu de
Alexandria escolheriam um livro e procurariam um lugar para se sentarem na
êxedra. Ou retirar-se-iam para os seus aposentos para se deitarem. Ou leriam a
passear lentamente entre as colunas e diante do olhar cego das estátuas. E
assim transitariam pelos caminhos da invenção e das rotas da memória.
Sem que ninguém chegue a perceber,
entra na biblioteca um grupo de anjos ataviados com essa memorável estética dos
anos oitenta: sobretudos escuros, camisolas de gola alta e, no caso de Bruno Ganz,
o cabelo apanhado num pequeno rabo-de-cavalo. Como os humanos não conseguem
vê-los, os anjos aproximam-se em liberdade, sentam-se ao seu lado ou
colocam-lhes uma mão no ombro. Intrigados, espreitam pelos livros que estão a
ler. Acariciam o lápis de um estudante, a ponderar sobre o mistério de todas as
palavras que saem desse pequeno objeto. Ao pé de umas crianças, imitam sem
compreendê-lo o gesto de tocar levemente nas linhas com o dedo indicador.
Observam à sua volta, com curiosidade e surpresa, rostos ensimesmados e olhares
mergulhados nas palavras. Querem entender o que é que os vivos sentem nesses
momentos e porque é que os livros prendem a sua atenção com tanta intensidade.
Os anjos possuem o dom de ouvir os
pensamentos das pessoas. Embora ninguém fale, captam à sua passagem um murmúrio
constante de palavras sussurradas. São as sílabas silenciosas da leitura. Ler
constrói uma comunicação íntima, uma solidão sonora que, para os anjos, é
surpreendente e milagrosa, quase sobrenatural. Dentro das cabeças das pessoas,
as frases lidas ecoam como um canto à capela, como uma oração.
Tal como nesta sequência do filme, a
Biblioteca de Alexandria devia estar povoada de rumores e sussurros em voz
baixa. Na Antiguidade, quando os olhos reconheciam as letras, a língua
pronunciava-as, o corpo seguia o ritmo do texto, e o pé batia no chão como um
metrómano. A escrita ouvia-se. Poucos imaginavam que fosse possível ler de
outra forma.
Falemos por um momento de si, que lê
estas linhas. Neste momento, com o livro aberto entre as mãos, dedica-se a uma
atividade misteriosa e inquietante, embora o hábito o impeça de se surpreender
com aquilo que faz. Pense bem. Está em silêncio, a percorrer com o olhar filas
de letras que fazem sentido para si e lhe comunicam ideias independentes do
mundo que o rodeia neste momento. Retirou-se, para dizê-lo de alguma forma,
para uma divisão interior onde lhe falam pessoas ausentes, ou seja, fantasmas
visíveis apenas para si (neste caso, o meu eu espectral) e onde o tempo passa
ao ritmo do seu interesse ou do entendimento. Criou uma realidade paralela à
ilusão cinematográfica, uma realidade que só depende de si. Você pode, em
qualquer momento, afastar os olhos destes parágrafos e voltar a participar na
ação e no movimento do mundo exterior. Mas, entretanto, permanece à margem,
onde escolheu estar. Há uma aura quase mágica em tudo isto.
Não pense que foi sempre assim. Desde
os primeiros séculos da escrita até à Idade Média, a norma era ler em voz alta,
para si próprio ou para outros, e os escritores pronunciavam as frases à medida
que as escreviam ouvindo assim a sua musicalidade. Os livros não eram uma
canção que se cantava com a mente, como agora, mas sim uma melodia que saltava
para os lábios e soava em voz alta. O leitor convertia-se no intérprete que lhe
emprestava as suas cordas vocais. Um texto escrito entendia-se como uma
partitura muito básica e por isso apareceriam as palavras, uma atrás de outra,
numa cadeia contínua sem separações nem sinais de pontuação – era preciso
pronunciá-las para entendê-las. Quando se lia um livro costumava haver
testemunhas. Eram frequentes as leituras em público, e os relatos que agradavam
andavam de boca em boca. Não precisamos de imaginar os pórticos das bibliotecas
antigas em silêncio, mas sim invadidos pelas vozes e pelos ecos das páginas.
Salvo exceções, os leitores antigos não tinham a liberdade da qual você
disfruta para ler à sua vontade as ideias ou as fantasias escritas nos textos,
para parar, para pensar ou para sonhar acordado quando lhe apetece, para
escolher e ocultar o que escolhe, para interromper ou abandonar, para criar os
seus próprios universos. Esta liberdade individual, a sua, é uma conquista do
pensamento independente face ao pensamento tutelado, e foi conseguida passo a
passo ao longo do tempo.
Talvez por esse motivo, os primeiros a
ler como você, em silêncio, em conversa muda com o escritor, tenham chamado
poderosamente a atenção. No século IV, Agostinho de Hipona ficou tão intrigado
ao ver o bispo Ambrósio de Milão ler desta forma que o anotou nas suas Confissões. Era a primeira vez que
alguém fazia algo assim à sua frente. É óbvio que lhe pareceu uma coisa fora do
normal. Ao ler – conta-nos com estranheza -, os seus olhos transitam pelas
páginas e a sua mente entende o que dizem, mas a sua língua cala-se. Agostinho
apercebe-se de que esse leitor não está ao seu lado apesar da sua grande
proximidade física, mas sim que escapou para outro mundo mais livre e fluído
escolhido por ele, está a viajar sem se mexer e sem revelar a ninguém onde
podem encontrá-lo. Esse espetáculo parecia-lhe desconcertante e fascinava-o.
Você é um tipo de leitor muito especial e descende de uma genealogia de inovadores. Este diálogo silencioso entre nós os dois, livre e secreto, é uma invenção surpreendente.”
Vallejo, I. (2020).O Infinito num Junco. Bertrand Editora.
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