Ainda no âmbito da
evocação do Regicídio, deixamos mais uma sugestão de leitura, desta vez um
excerto do livro “D. Amélia – A rainha exilada que deixou o coração em Portugal”.
“Estação
fluvial de Lisboa, 1 de Fevereiro de 1908
A viagem tinha sido
longa, o comboio descarrilara ali por altura de Casas Brancas, parara duas
horas com uma avaria. Amélia tinha telegrafado a Manuel a avisar do atraso. O
príncipe respondera que lhe dava jeito mais umas horas para praticar o piano,
que Rey Colaço lhe daria assim aula até mais tarde. Amélia comentara divertida
com Luís Filipe:
- Suspeito que o mano
se tem divertido à grande, sem a mãe para o obrigar a cumprir horários.
Agora atravessavam o
rio, um dia gelado mas de céu azul, «os meus favoritos», confessara, para
elogiar a vista da cidade que com esta luz fica deslumbrante, comentara,
enquanto segurava o filho pelo braço.
- Não se incline assim,
Luís Filipe, que cai.
- O príncipe chegou-se
perto, e cobriu-a com o seu casacão, enquanto lhe dizia ao ouvido:
- A caçada foi boa,
minha querida mãe?
Amélia apertou-lhe a
mão e sorriu.
- Ontem à noite estava
um bocadinho melodramática, filho, desculpe…
Percebo as suas
angústias, não sou uma criança. Lembre-se de que estava lá no dia em que a
carruagem de Afonso e Ena foi pelos ares. Também tenho medo, há alturas em que
tenho mesmo muito medo.
Amélia virou-se,
aflita:
- Filho…
- É claro que ando
armado, mãe, e o pai também. Não podemos evitar os perigos, mas podemos tentar
defender-nos deles…
Amélia olhou-o,
angustiada.
- Implorei ao pai para
que insistisse com o João Franco para vos dar proteção, a si e a ele. Mas o pai
diz que vai atravessar a cidade de landau aberto, ainda agora recusou que nos
viessem buscar de carro. Garante que agora, agora que os cabecilhas da
revolução estão presos, não há grande perigo…
- Mãe, se o pai acreditasse
que havia perigo acha que a deixava a si, ou a mim e ao Manuel correr perigo?
Corajoso como é, atravessava o Terreiro do Paço a pé, se fosse preciso, mas não
nos sujeitava a qualquer risco…
Amélia acenou que sim
com a cabeça. Era verdade o que Luís Filipe dizia, mas temia que Carlos
estivesse a avaliar mal a situação, por toda a Europa corriam os atentados.
- Olhe – disse Luís
Filipe, aproveitando para a distrair -, olhe quem está ali a acenar-lhe, o seu
bebé, o seu Manolito…
A rainha virou-se para
o cais que se aproximava e que estava cheio de gente, os ministros que
esperavam o rei, alguns dos seus amigos, e Manuel, com Kerausch ao lado, que
sem vergonha lhes acenava.
Amélia olhou para o
relógio. Eram cinco da tarde – aquela pobre gente tinha esperado e bem. Foi a
primeira a desembarcar. Abraçou o filho mais novo com força e aceitou as flores
de uma criança de bochechas rosadas. Deu-lhe um beijo rápido e foi
cumprimentando os que gostava e os que não gostava até chegar a carruagem…
Falavam entre eles.
Manuel contava-lhes entusiasmado como a Never
Mind, a égua favorita da rainha, estava coxa. Amélia dava-lhe pormenores do
descarrilamento. Carlos troçava da falta de pontaria de Luís Filipe: «Houve
pelo menos um porco que se ficou a rir do seu irmão», enquanto o herdeiro lhe
fazia uma careta e Manuel ria divertido.
A carruagem era
precedida de dois batedores, e as restantes da comitiva tinham-se atrasado.
Subitamente o ruído de
um tiro. Amélia virou os olhos aterrorizada para o lado de onde viera o
estalido. De joelho assente na rua, um homem de barba negra e capa fazia pontaria
e disparava.
Pelo canto do olho,
captou um vulto que corria na direção do landau e se dependurava de um dos seus
estribos. Quando deu por si estava em pé, as flores na mão fustigavam a cara do
homem que de revólver na mão disparava sobre todos eles. La Grande, alta,
aterrorizada, batia-lhe e gritava «Infames», «Infames».
Luís Filipe estava de
pé e o seu revólver fumegava.
«Claro que ando armado,
mãe. Eu protejo o meu pai, eu mato quem o matar», a frase ecoava-lhe nos
ouvidos. Gritou. Mandou-o sentar. Berrou-lhe que se protegesse. E viu o seu corpo
cair, uma ferida imensa na cara, de onde jorrava sangue. Viu Manuel a puxar do
lenço, a enxugar o sangue que corria, o lenço tingido, ensopado, a pingar.
- Luís Filipe não, o
meu filho não – gritava alto. Mais dois tiros soaram, e em terror, tanto terror
como nunca tinha sentido antes, louca de terror berrou ao cocheiro:
- Tire-nos daqui.
O tiroteio continuava
cerrado. Já nem se virara para a rua, só para o seu filho.
- Tire-nos daqui,
tire-nos daqui – repetia, desvairada.
- Respira, ainda
respira, Luís, meu querido, meu querido filho, aguente, vamos chamar o médico,
vamos para o Hospital da Estrela, meu querido filho.
Tomava-o nos braços e
embalava-o, o vestido ensopado no sangue, que era afinal o seu, a esperança a
impedi-la de enlouquecer.
- Tire-nos daqui,
tire-nos daqui – gritava de novo.
O cocheiro fustigava os
cavalos que galopavam assustados pela calçada, o cocheiro a puxar as rédeas, a
conduzi-los para a Rua do Arsenal, era só preciso passar o portão do Arsenal da
Marinha, lá dentro estariam seguros. Ouviu uma nova silvada de tiros e Manuel gritou:
- Deixe mãe, foi só uma
bala de raspão no braço – sossegou-a. Dois homens saltaram sobre o estribo.
Reconheceu o marquês de Lavradio.
- Salve-o, salve-o –
implorou, enquanto o segundo homem, ofegante da corrida que fizera pelo
terreiro, tomava o pulso do príncipe.
- Ainda respira,
senhora.
O corpo pesado de
Carlos estava dobrado sobre si mesmo, ligeiramente inclinado para o lugar que a
mulher ocupara, como se buscasse o seu apoio. O corpo crivado de balas, um
boneco que abanava a cada solavanco, ignorado, esquecido, porque Amélia só via
Luís Filipe, só Luís Filipe lhe importava.
- El-rei está morto –
disse Lavradio, e Amélia repetiu alto, a voz estridente:
- El-rei está morto.
O landau entrou pelo
portão do Arsenal e os marinheiros tentaram parar os cavalos, as mãos lançadas aos
freios, enquanto outros acorriam ao rei e à rainha, aos corpos, aos mortos, aos
vivos.
- Depressa, depressa um
médico – gritava Amélia. Manuel ajudava os guardas a tirar o corpo do irmão e a
estendê-lo no chão do barracão, o corpo de Luís Filipe ao lado do corpo de
Carlos, estendido sobre dois sacos de serapilheira, a cama de reis, a sepultura
de dois cadáveres.
Amélia ajoelhou-se
sobre o corpo do filho e sentiu uma tontura, perdeu os sentidos. Manuel
suportou-lhe o corpo, e gemeu, o sangue a correr-lhe do braço, mas Amélia
voltou a si. «Como era possível que fraquejasse num momento destes?», pensou,
zangada consigo mesma, «o meu filho ainda precisa de mim».
A condessa de Figueiró,
que chegara na carruagem atrás, veio ao seu encontro.
Pepita gritava,
agarrada à sua senhora, mas Amélia sacudiu-a, impaciente.
- Um médico, um médico –
insistia, e ajoelhava-se junto do príncipe, a cara desfeita pelo tiro da
carabina, os olhos fechados.
- Já não respira, Sua
Alteza – disse-lhe, numa voz sussurrada, um dos soldados que tomara o pulso do
príncipe.
- Mataram o meu filho –
disse Amélia, e Manuel encostou-se à mãe a soluçar. Passou a mão distraída pelo
cabelo do filho mais novo, parecia sossegar, mas subitamente disparou em
direção ao portão, como uma flecha. Tinha acabado de o ver. João Franco lívido,
ofegante, entrava a correr pelo portão, sozinho, saltara da carruagem da
comitiva e atravessara o terreiro pelo seu pé.
Esquecida de tudo,
avançou sobre ele fora de si. Este homem roubara-lhe tudo. Os assassinos tinham
disparado as armas, mas fora ele, só ele, que tornara possível o crime.
Acusou-o: «Mataram el-rei, Mataram o meu filho!» Sabia que se tivesse na mão
uma arma, se tivesse na mão a pistola do seu filho, o teria morto.
Lavradio deu-lhe o
braço e apertou-o com força, puxando-a de novo ao pátio, aos corpos deitados no
chão.
Trouxeram-lhe uma
cadeira. Cobriram-na com cobertores. E assim ficou a rezar baixinho, ao lado
dos seus, sem ver os ministros e os amigos que entravam e saíam, como se
precisassem de ver para crer.
Só uma voz a fez
despertar, talvez fosse o facto de lhe falar em francês, como se encontrasse na
língua, na sua língua, um colo.
Ergueu-se de um salto.
- Mataram o meu filho –
murmurou em voz baixa Maria Pia, a sua sogra, uma sombra do que era.
- O meu também – retorquiu
Amélia, a dor em cada sílaba estridente.
A rainha-mãe olhou-a
estarrecida. Arrastada da Ajuda para o Arsenal só agora compreendia: perdera o
filho e o seu adorado neto.
Deixou-se cair sobre os
joelhos e chorou.
«Porque não morri também?
Porque não me mataram? Esses vermes, esses infames, porque não me mataram a mim?»,
repetia, como que numa ladainha, a cabeça de Manuel deitada sobre o seu colo,
na carruagem fechada e escoltada pela cavalaria da guarda municipal que os levava
para as Necessidades.
Manuel gemeu:
- Não diga isso,
mãezinha, não diga isso, mãe, não me deixe sozinho.
Amélia ajeitou o braço
ligado do seu pequenino e beijou-lhe a testa.
Tinha ao colo o rei de
Portugal. (…)"
Stilwell, I. (2010). D. Amélia – a rainha exilada que deixou o
coração em Portugal. Lisboa: Esfera dos Livros.
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